pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO: Le Monde: O crescimento da extrema-direita no cenário eleitoral francês
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quarta-feira, 19 de abril de 2017

Le Monde: O crescimento da extrema-direita no cenário eleitoral francês

O LIBERALISMO POLÍTICO EM JOGO
É fundamental que as esquerdas, atualmente muito fragilizadas, realizem uma urgente autocrítica e repensem seus programas, de modo a encontrar respostas viáveis para os desafios impostos por uma conjuntura tão complexa
por: Leandro Gavião
3 de abril de 2017
triplice-desgaste
Traçar comparações entre diferentes temporalidades históricas é sempre um caminho ardiloso que pode levar a paralelismos bastante equivocados. No entanto, é interessante relacionar os efeitos das crises de 1929 e de 2008, visto que ambas se iniciam como fenômenos restritos à esfera econômica, embora seus impactos atinjam em profundidade a dimensão política.
Conforme argumenta Eric Hobsbawm, a Crise de 1929 resultou num golpe fatal contra o liberalismo econômico, mas seus reflexos foram igualmente devastadores no que se refere ao conjunto de valores do liberalismo político – alternância de poder, eleições livres e regulares, pluripartidarismo, equilíbrio entre os poderes, proteção às minorias e liberdade de pensamento e de imprensa.1 Em pouco tempo, a falência generalizada dos regimes democráticos tornou-se realidade, ao passo que as massas desempregadas e desesperadas viam no fascismo a solução do futuro. Em fins da década de 1930, havia apenas três grandes democracias: Estados Unidos, Reino Unido e França. Em linhas gerais, o restante do mundo independente vivia em regimes totalitários, autoritários ou em democracias deficientes.
Resguardadas as suas diferenças, nota-se que a Crise de 2008 – a maior desde 1929 – também provocou efeitos políticos consideráveis. O desemprego, a redução do poder de compra, o aumento da desigualdade e a aceleração do desmonte do Estado de bem-estar social são processos que foram impulsionados pela crise, contribuindo para formar uma atmosfera de incerteza na Europa. Em face desses problemas, Thomas Piketty sugere que “a resposta mais fácil são a xenofobia e o nacionalismo”.2
Todavia, é importante enfatizar que o crescimento da extrema-direita no Velho Mundo deve ser compreendido dentro de um quadro mais complexo, no qual estejam contempladas variáveis de ordem subjetiva. O fluxo migratório e a permanente ameaça terrorista, por exemplo, têm provocado mudanças no imaginário europeu e estimulado tensões culturais entre estes e muçulmanos, reforçando suas respectivas identidades coletivas.
Outro dilema é o enfraquecimento identitário dos partidos tradicionais. Tal constatação não é necessariamente nova, posto que autores vinculados às mais variadas correntes ideológicas e matizes teóricos têm chamado atenção para essa questão há alguns anos.3 Ao observar as disputas eleitorais no âmbito da União Europeia (UE) – especialmente nos países da Zona do Euro –, nota-se que as divergências entre os partidos do establishment muitas vezes se restringem a temas de liberdades civis – aborto, descriminalização de drogas leves e união homoafetiva –, ao passo que, no âmbito econômico, a margem de manobra é estreita demais para fazê-los escapar de um programa mínimo liberal estabelecido de cima para baixo pelos organismos supranacionais da UE.
A insatisfação do eleitorado com essa aparente homogeneidade programática é algo que tem sido bem aproveitado pelas legendas radicais que se apresentam como uma opção para além do mainstream. Este artigo não pretende analisar as incoerências das propostas de viés nacional-populista, mas sim ressaltar que a extrema-direita sabe muito bem estruturar o seu discurso para capitalizar as turbulências do atual contexto sociopolítico.
O cenário eleitoral francês
Valendo-se das incertezas que rondam a Europa, a Frente Nacional (FN) de Marine Le Pen tem ganhado fôlego e apresentado condições de chegar ao poder, o que torna o pleito pelo Palácio do Eliseu o principal evento do calendário eleitoral de 2017.
Há um profundo anseio popular por mudança. Quanto a isso, os resultados das primárias são eloquentes, tendo em conta que tanto o ex-presidente Nicolas Sarkozy como o ex-primeiro-ministro Manuel Valls – ambos candidatos do establishment – foram derrotados por dois adversários menos expressivos: François Fillon e Benoît Hamon, respectivamente. Ademais, é possível que esta venha a ser a primeira eleição desde a fundação da Quinta República (1958) que não terá a participação nem do Partido Socialista (PS) nem da sigla de centro-direita – atualmente com o nome “Os Republicanos” – no segundo turno da disputa presidencial.
Considerando os candidatos mais bem posicionados nas pesquisas, o cenário eleitoral pode ser resumido da seguinte forma:

POSIÇÃO POLÍTICAExtrema-esquerdaCentro-esquerdaCentroCentro-direitaExtrema-direita
CANDIDATOJean-Luc MélenchonBenoît HamonEmmanuel MacronFrançois FillonMarine Le Pen
PARTIDO POLÍTICOFrança InsubmissaPartido SocialistaEm Marcha!Os RepublicanosFrente Nacional
INTENÇÃO DE VOTOS
(primeiro turno)4
14%10%26%17,5%25,5%

Jean-Luc Mélenchon concorre às eleições com a ambiciosa proposta de fundar a Sexta República, argumentando que a Constituição de 1958 é anacrônica e as instituições vigentes inviabilizam o funcionamento de uma democracia real. Mélenchon propõe uma Revolução Cidadã capaz de realizar um processo de reformulação político-social que devolva ao povo o papel de condutor das decisões por meio de uma espécie de democracia participativa. Mélenchon critica contundentemente os partidos tradicionais, alegando submissão ao receituário econômico liberal imposto pela UE.
Benoît Hamon foi ministro da Educação de Hollande. Situado na ala mais à esquerda do rachado PS, seu programa reivindica a formação de um novo modelo de desenvolvimento e apresenta forte conteúdo social e ambiental, incluindo a redução da jornada de trabalho e o estabelecimento de uma renda básica universal para todos os franceses com mais de 18 anos. Hamon precisa lidar com dois graves problemas: de um lado, a divisão interna do partido, uma vez que parte de seus quadros, incluindo o influente ex-primeiro-ministro Manuel Valls, prefere apoiar o moderado Emmanuel Macron; por outro lado, Hamon herda o desgaste da imagem do PS devido ao governo impopular do presidente François Hollande, que sequer tentou a reeleição.
Emmanuel Macron é o presidenciável que mais tem crescido nas pesquisas. Egresso da ala mais à direita do PS e fundador do movimento Em Marcha!, ele tem reunido milhares de pessoas em seus comícios e empolgado parte do eleitorado insatisfeito com as siglas tradicionais. Fundado em 2016, o novo partido de centro goza da vantagem de estar alheio aos escândalos políticos.
Frequentemente definido como social-liberal, Macron mostra-se disposto a harmonizar, segundo suas próprias palavras, “eficiência” – reformas econômicas liberais que dinamizem a economia – com “justiça” – aperfeiçoamento do Estado de bem-estar e apoio a medidas consideradas progressistas, tais como o casamento igualitário e revisão crítica da colonização da Argélia. Além dos eleitores centristas, Macron tem atraído segmentos de esquerda desiludidos com o PS e uma parte da direita moderada eurófila que se encontra ressentida com as denúncias contra François Fillon.
François Fillon venceu as primárias da direita com folga (66,5%), derrotando o veterano Alain Juppé. De olho na ascensão da extrema-direita, Fillon elaborou um programa que o apresentasse como um candidato capaz de combinar posições conservadoras – reduzir a maioridade penal, armar as polícias municipais e combater o “totalitarismo islâmico” – com uma agenda econômica concentrada na austeridade. Seu perfil à la Thatcher é questionado dentro de seu próprio partido e sua candidatura perdeu força após investigações revelarem que sua família estava envolvida em casos de corrupção. Doravante, muitos correligionários o abandonaram em plena campanha.
Marine Le Pen chega à disputa presidencial impulsionada pelos avanços das variantes de direita populista pelo mundo. A vitória de Donald Trump, a saída do Reino Unido da União Europeia, o crescimento acelerado das legendas nacionalistas radicais em boa parte dos países europeus são fatores que convergem e favorecem diretamente a candidata da FN. O programa de Le Pen é tributário de ideias conservadoras, nacionalistas e protecionistas, apresentando forte conteúdo antimigratório, críticas ao multiculturalismo e à União Europeia.
Le Pen apresenta um verdadeiro repertório de propostas polêmicas. O retorno das fronteiras e da autonomia francesa, por exemplo, seria alcançado mediante a saída da UE, da Zona do Euro e da Área de Schengen, ao passo que a antiga moeda nacional seria recriada e desvalorizada em relação ao Euro, de modo a aumentar a competitividade do país. Para além do controle sobre o câmbio, é importante ressaltar o apelo simbólico por trás da reutilização do Franco, moeda criada no contexto da Revolução Francesa e que por mais de dois séculos foi uma das expressões da soberania nacional.
A candidata também defende a interdição ao uso do véu e do burkini, além de uma medida que aumentará os impostos das empresas que contratarem imigrantes. Ademais, Le Pen faz declarações islamofóbicas com frequência, normalmente apresentando uma visão binária de luta do bem contra o mal.
Uma eleição decisiva
Na Europa, a ascensão do extremismo de direita ocorre em diferentes níveis. Para além da eleição de chefes de governo – exemplo da Hungria, com Viktor Orbán – e de manifestações civis favoráveis às vertentes nacionalistas radicais, há circunstâncias em que a política já reflete uma visão de mundo protofascista.
Um caso emblemático é a cidade húngara de Ásotthalom, onde está proibido o uso de trajes muçulmanos, a construção de mesquitas e qualquer propaganda pública que mostre casais do mesmo sexo. Em 2015, foi divulgado um vídeo grotesco no qual o prefeito László Toroczkai ameaça caçar e prender imigrantes ilegais. Tais declarações são intercaladas com cenas de tropas a cavalo, de moto e até mesmo helicópteros fiscalizando a fronteira com a Sérvia.5
É nessa atmosfera que a eleição presidencial francesa emerge como decisiva. O que está em jogo não é apenas o projeto europeu de integração, mas a preservação dos valores do liberalismo político. Não se pode esquecer o duplo legado da Revolução Francesa: consolidar a concepção moderna de liberdade e atribuir-lhe caráter ecumênico, haja vista que o compromisso dos revolucionários não se restringia aos franceses, mas sim à humanidade. Esse é um dos motivos que torna o pleito ainda mais simbólico. E na política os símbolos são fundamentais. Não é mera coincidência que o curto governo fascista da França de Vichy (1940-1944) tenha substituído o lema “liberdade, igualdade e fraternidade” por “pátria, família e trabalho”.
Contudo, todas as pesquisas indicam que a rejeição atribuída a Le Pen ainda é grande o suficiente para impedi-la de chegar ao Palácio do Eliseu. Por outro lado, poucos poderiam prever o potencial de Emmanuel Macron, “candidato sensação” capaz de reorganizar o jogo eleitoral liderando um pequeno partido com menos de um ano de vida. Salvo algum evento imprevisto, como o surgimento de um escândalo ou a intensificação da covarde campanha difamatória na internet – aparentemente orquestrada por hackers russos –, é provável que o jovem Macron, de apenas 39 anos, seja o novo presidente.
Ainda assim, deve-se enfatizar que uma hipotética derrota da extrema-direita não garante que os impasses e incertezas que rondam a França serão solucionados pelo próximo governo. No mesmo sentido, é fundamental que as esquerdas, atualmente muito fragilizadas, realizem uma urgente autocrítica e repensem seus programas, de modo a encontrar respostas viáveis para os desafios impostos por uma conjuntura tão complexa. Do contrário, continuarão a decepcionar o eleitorado e a perder espaço no tabuleiro político.
Entretanto, em meio a um cenário internacional pouco auspicioso, é compreensível que um revés da Frente Nacional seja motivo de sincera comemoração.

1 HOBSBAWM, E. Era dos extremos: o breve século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
2 Disponível em: http://bit.ly/2mjVJLV.
3 A lista é longa e inclui autores como Jean-Marie Guéhenno, Jacques Rancière, István Mészáros e Zygmunt Bauman.
4 Pesquisa divulgada pelo instituto Ifop-Fiducial em 29/03/2017.


5 Disponível em: http://bit.ly/1iySJFq.

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