pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO: Le Monde: A cultura do medo imposta por policiais
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sábado, 24 de dezembro de 2016

Le Monde: A cultura do medo imposta por policiais


A polícia jamaicana não está apenas matando pessoas em números alarmantes, mas usa um longo catálogo de “táticas de terror” para garantir que ninguém faça perguntas ou busque justiça
por Louise Tillotson
Na manhã em que o irmão dela foi morto a tiros em janeiro de 2014, Shackelia Jackson perdeu a hora. Ela acordou com o som do nome dele e soube na hora que algo estava errado. Quando ela correu para o restaurante modesto que ele operava no centro de Kingston, notou a colher na panela de arroz e a farinha onde o frango estava sendo frito. Em seguida, um dos chinelos dele, e marcas de sangue.
O irmão dela, Nakiea, tinha acabado de preparar os pedidos para o almoço e tirar o lixo quando foi executado pela polícia, que acreditava que um roubo tinha acontecido ali perto e estava perseguindo um homem de “aparência Rastafári”. Nakiea encaixava-se na descrição.
Nos dois anos que se passaram desde que ele foi morto, a polícia patrulhou a comunidade várias vezes, sempre coincidindo com os dias em que o tribunal ouviria o caso dele. Uma consulta preliminar foi dispensada depois que uma testemunha assustada não apareceu no tribunal. Quando a comunidade protestou contra a dispensa do caso em julho, carros da polícia apareceram.
Em sua busca pública por justiça, as irmãs e o irmão de Nakiea sofrem intimidações e assédios frequentes por parte da polícia.
Infelizmente, essa não é uma história incomum na Jamaica. Na última década, a polícia do país caribenho matou mais de 2 mil pessoas – até recentemente, uma média de quatro pessoas por semana, a maioria homens jovens em comunidades urbanas marginalizadas.
Porém, por mais que sejam assustadores, esses números contam apenas parte da história.
Como revela nosso novo relatório, “Esperando em vão, Jamaica: homicídios ilegais cometidos pela polícia e a longa luta dos parentes por justiça”, a polícia jamaicana não está apenas matando pessoas em números alarmantes, mas usa um longo catálogo de “táticas de terror” para garantir que ninguém faça perguntas ou busque justiça.
As evidências apontam fortemente para as execuções extrajudiciais como estratégia sancionada pelo Estado para “se livrar dos criminosos”. Outros mortos são testemunhas, pessoas sob custódia da polícia ou apenas aqueles que estavam no lugar errado, na hora errada.
Após os tiroteios policiais, os oficiais mexem na cena do crime, deixam as vítimas sangrarem até a morte ou as levam para outro lugar para “dar fim a elas”.
Quando os parentes procuram a justiça, enfrentam assédio intenso por parte da polícia em várias áreas de suas vidas. A maior parte das pessoas com quem falamos durante vários meses pediu para contar suas histórias de forma anônima, pois vivem com muito medo de represália.
Vários familiares, incluindo crianças, viram seus parentes sendo mortos na frente deles. Muitos ainda encontram os policiais supostamente responsáveis em seus bairros. É comum que a polícia apareça na casa deles, em alguns casos para prender de maneira ilegal e maltratar os parentes da vítima. Eles também aparecem nos hospitais e até nos funerais das vítimas, tudo para intimidar e silenciar.
Enquanto isso, as famílias ficam esperando, dependentes de um sistema judiciário extremamente lento.
Há 13 anos, Claudette Johnson tem esperado que o Tribunal Especial determine a causa da morte do filho dela, supostamente assassinado pelas mãos da polícia. O tribunal tem um orçamento magro e um acúmulo de pelo menos trezentos casos, mas esse é apenas o primeiro passo no esforço dela. Se o inquérito concluir que houve uma execução extrajudicial, pode levar outra década até que o caso seja julgado.
Em um contexto de enorme impunidade e sem representação legal desde que a Jamaicans for Justice, uma ONG de direitos humanos que a assistia, perdeu o financiamento para tal trabalho em 2014, Claudette muitas vezes sente que está esperando em vão.
As autoridades jamaicanas vão argumentar que estão fazendo algo certo, já que o número de assassinatos policiais diminuiu bastante nos últimos anos.
Os números podem ter diminuído, mas pouco mudou na maneira como as forças policiais lidam com os problemas institucionais chocantes que permitem aos oficiais se safar sem punição.
Até junho deste ano, um mecanismo de supervisão policial independente (Indecom) estabelecido em 2010 iniciou processos contra a polícia em cem casos, mas apenas alguns foram a julgamento por causa de atrasos no sistema judiciário. Até onde sabemos, poucos policiais foram condenados desde 2000 pelos mais de 3 mil assassinatos cometidos por eles no mesmo período. Quando perguntamos, o diretor do Ministério Público jamaicano não forneceu dados sobre o número de acusações apresentadas contra oficiais ou o número de condenações feitas nos últimos dez anos.
O Indecom mudou a resposta da Jamaica em relação às décadas de epidemia de execuções extrajudiciais. Mas não importa sua eficácia, ele não tem varinha mágica e não pode ser o único responsável pela melhora da responsabilização dentro das forças policiais jamaicanas. Levar os policiais jamaicanos a julgamento requer uma liderança política forte e o desejo genuíno de reformar um sistema que deixa a polícia se safar. Não significa reinventar a roda, mas fortalecer as instituições que podem construir um forte sistema de responsabilização.
O Tribunal Especial precisa urgentemente de reforma e de recursos para operar de maneira eficaz e ter um papel na prevenção de assassinatos futuros. No último mês de junho, uma comissão de inquérito para as violações dos direitos humanos durante uma operação conjunta policial-militar em 2010 que deixou 69 mortos fez recomendações claras para a reforma da polícia. Os níveis mais altos do Estado devem prestar atenção e agir com base nessas recomendações.
A reforma atual do sistema judiciário também deve incluir medidas práticas que protejam as testemunhas e garantir um acesso mais rápido e igualitário à justiça para os parentes daqueles supostamente mortos por agentes do Estado.
A história mostra que a maneira como a polícia opera e mata não resolve a criminalidade, e sim aterroriza as famílias e leva as comunidades ao silêncio. Essa situação não pode continuar. Chega de esperar em vão: é hora de justiça.

Louise Tillotson
Pesquisadora de Caribe na Anistia Internacional.

(Publicado originalmente no site do jornal Le Monde Diplomatique Brasil)

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