pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO: Le Monde: Direito à cidade e desigualdades regionais
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sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Le Monde: Direito à cidade e desigualdades regionais


Na conjuntura favorável dos governos Lula, uma nova orientação foi dada à política de desenvolvimento regional visando à redução das desigualdades não só entre as regiões, mas, também, dentro de cada região
por Jan Bitoun e Lívia Miranda

Ficaremos mais distantes de um desenvolvimento socialmente equilibrado, ambientalmente sustentável e politicamente participativo para os municípios brasileiros (Crédito: Klaus Balzano)
A leitura das desigualdades regionais se deu desde meados do século passado comparando indicadores econômicos e sociais das cinco grandes regiões do país: Sudeste, Sul, Centro Oeste, Nordeste e Norte. Consolidou-se no senso comum uma representação de um Brasil desenvolvido cujo núcleo está no Sudeste e no Sul e de um Brasil subdesenvolvido, nas demais grandes regiões. Com efeito, a concentração no Sudeste e no Sul de uma estrutura industrial diversificada em especial nas metrópoles e nas suas proximidades foi se configurando durante o processo veloz de industrialização tardia do país, acelerado dos anos 1940 a 1970.
O direito à cidade em tempos de crise
A série “O direito à cidade em tempos de crise” é uma parceria do Le Monde Diplomatique Brasilcom o INCT (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia) Observatório das Metrópoles. A série tem como objetivo suscitar a reflexão e monitorar os avanços e conquistas na afirmação do direito à cidade no Brasil, denunciar retrocessos e apontar tendências para o futuro das cidades brasileiras.
A cidade transformou-se, em pleno século XXI, no palco principal das lutas políticas e sociais. A reprodução da vida, individual e coletiva, biológica e social, depende cada vez mais da qualidade do meio urbano construído que se expressa na forma social que chamamos de cidade, mas que também se expressa na sociedade urbana global.
Ao mesmo tempo, a atual crise do capitalismo tornou a cidade uma nova fronteira de escoamento do capital sobre acumulado e financeirizado. Estes dois movimentos tornaram a cidade palco e objeto das lutas contemporâneas de classes, opondo a razão da reprodução da vida à razão da reprodução do capital. Esta contradição global está também cada vez mais presente no Brasil.
Com efeito, ingressamos na sociedade urbana com legado de cidades historicamente precárias, nas quais estão presente dois projetos antagônicos em disputa. De um lado, o representado pelos ideais, princípios e mecanismos da reforma urbana que obteve alguns avanços na afirmação do direito à cidade, no período 2003-2013. De outro lado, o projeto representado pela ideologia neoliberal que, em nome do empreendedorismo urbano, tem incentivado a adoção de políticas urbanas habilitadoras das forças mercantilizadoras do solo urbano, da moradia, privatização dos serviços coletivos, entre outros.
Mas qual desses projeto irá predominar diante do atual quadro de crise político-econômica de longa duração no país? Se caso a saída para a crise for conservadora e ultra liberal, isso representará um provável retrocesso das conquistas do direito à cidade no Brasil. E é esse um dos principais campos em disputa.
No início do século XXI, essa representação começa a se desfazer: o Centro Oeste transformou-se no celeiro da agropecuária de exportação; o Norte e suas populações, culturalmente diversas, é percebido pela ciência e pela mídia com um novo olhar graças à centralidade que têm hoje no mundo a biodiversidade e a sustentabilidade (Becker, 1999). As populações do Nordeste, especialmente as famílias em condição de pobreza ou de baixa renda, experimentaram nos últimos governos inovações importantes: universalização da energia elétrica, oportunidades educacionais, melhor proteção social, pequeno aumento da renda que permitiu ampliar o consumo, atraindo empresas de distribuição de bens e serviços. Um novo quadro foi se esboçando atestado por um novo padrão dos fluxos migratórios, reduzindo-se a migração para o Sudeste, e, frente à atual seca severa e prolongada, pela ausência dos saques e fluxos de retirantes que eram comuns em episódios anteriores. O gostinho da mudança foi vivenciado por segmentos numerosos na região: empregadas domésticas cuja profissão foi regulamentada, mulheres enfrentando o machismo, afro-brasileiros cujos ancestrais foram objetos do tráfego negreiro no Atlântico Sul, trabalhadores que em sua grande maioria ganham o salário mínimo que seguiu, durante alguns anos, uma trajetória de aumento diferenciado.
A crise atual é mais um espasmo de alta intensidade no cenário instável comandado, desde os anos 1990 pela acumulação financeira, cujo ritmo, nas palavras de Cláudio Egler, “está determinado pela capacidade de conquistar fundos privados, seja no mercado doméstico, seja no mundial, viabilizada, em grande parte, pelas políticas cambiais e monetárias do Estado-nação, que passa a cooperar e/ou a competir com outros Estados-nações pela captura desses fundos privados” (Ipea, 2002, p.85-86).
As instabilidades decorrentes das práticas especulativas dos setores rentistas movimentando seus ativos financeiros em escala global, as políticas de desenvolvimento regional, que visam fortalecer a coesão territorial e reduzir as desigualdades entre as regiões de um país, sofrem descontinuidades. Em conjunturas favoráveis, quando os Estados-nações conseguem capturar esses fundos, ganham importância. Quando as capacidades financeiras dos Estados-nações se reduzem, a ênfase passa a ser dada às poucas regiões e cidades competitivas com capital e infraestruturas já consolidados e bem articulados em cenários continental e global.
No Brasil, após a interrupção das políticas de desenvolvimento regional nos anos 1980 e a desativação das superintendências regionais, houve uma lenta retomada já na segunda metade dos anos 1990, definindo eixos de desenvolvimento inseridos no Plano Brasil em ação do governo de Fernando Henrique Cardoso, com ênfase dada em cada grande região a segmentos e áreas que receberam recursos para completar ou acelerar sua integração competitiva no ambiente continental e global. Muitos dos investimentos do PAC nos governos posteriores deram continuidade a essa orientação. Mas, na conjuntura favorável dos governos Lula, uma nova orientação foi dada à política de desenvolvimento regional visando à redução das desigualdades não só entre as regiões, mas, também, dentro de cada região; concebeu-se o Plano Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR), que objetivava carrear recursos e projetos para as áreas economicamente menos dinâmicas e com grande incidência de pobreza. A tensão gerada entre essas duas orientações de políticas de desenvolvimento em cada região demandava uma nova leitura das desigualdades regionais em escalas mais finas que aquela consagrada das cinco grandes regiões.
Tânia Bacelar de Araújo, explica no texto Nordeste, Nordestes: Que Nordestes? (2000) que se buscou “avançar na percepção das diferenciações existentes dentro da própria região Nordeste, destacando-se os novos subespaços dinâmicos, as diferentes trajetórias estaduais e metropolitanas, e os focos de resistência a mudanças”. Essa nova leitura, ressaltando a heterogeneidade e a complexidade das dinâmicas em curso nas regiões do país guiou a proposta da política urbano-regional policêntrica elaborada, sob a coordenação do professor Clélio Campolina Diniz, pelo Centro de Estudos e Gestão Estratégica, para subsidiar a concepção da dimensão territorial do desenvolvimento nacional no Plano Plurianual PPA 2008-2011 e no planejamento governamental de longo prazo (CGEE, 2007). Nessa proposta, ressaltava-se, ao lado da já reconhecida importância dos espaços metropolitanos, a relevância das cidades médias e das suas inserções regionais, próximas ou mais distantes a depender das dinâmicas territoriais que vivenciavam.
Como bem ressaltou Fernandes (2008), pensar o urbano na sua dimensão regional significa compreender a cidade como um fator de distribuição de infraestruturas, serviços públicos, qualidade de vida e oportunidades para a população no território. Nessa perspectiva, o direito à cidade não pode estar restrito ao acesso a políticas bens e serviços, deve estar articulado a uma visão mais ampla: a do direito a uma cidadania plena que se materializa quando todas as pessoas, vivendo em zonas urbanas ou rurais, tiverem acesso a uma vida com qualidade, acesso à moradia digna, à terra urbanizada e ao saneamento ambiental, ao transporte público e à mobilidade, à alimentação, à cultura e ao lazer, à participação.
Considerando a grande diversidade de municípios brasileiros, é preciso reconhecer a inseparabilidade do urbano e do rural, não somente nos traços da economia urbana, mas também no cotidiano da cidade. Favareto e Wanderley (2013, p.441) alertam que o processo de urbanização brasileiro alcançará efeitos diferenciados, mais inclusivo ou excludente, em função das opções estratégicas escolhidas para o desenvolvimento rural:
“[...] assumirá significados distintos, se em sua incidência sobre o mundo rural reforçar um ou outro desses projetos: a imposição, em nome da modernização da agricultura, dos padrões dominantes de trabalho, produção e consumo, que reitera a grande propriedade como o modelo ideal de empresa rural ou, inversamente, a implantação de uma modernização rural, pela qual os habitantes do campo tenham assegurado o acesso aos bens e serviços socialmente necessários e possam participar como protagonistas da gestão desse mesmo acesso”.
Nos médios e pequenos municípios a vida está imbricada de ruralidades. Em função disso, a garantia do acesso às condições de produção; o fortalecimento do cooperativismo, da agricultura familiar, do uso de tecnologias agroecológicas, da autonomia econômica, social e política das mulheres também são essenciais para que as pessoas que vivem da terra tenham efetivamente seus direitos de cidadania reconhecidos e o acesso equânime igualitário às políticas públicas. Nessa direção, o Plano Diretor, na esfera municipal, poderia ser o instrumento integrador das políticas territoriais, tanto urbanas quanto rurais, como define o Estatuto da Cidade (Lei Federal 10.257/01), no seu Art. 40, § 2°: “O plano diretor deverá englobar o território do município como um todo”, no entanto tal determinação esbarra na sobreposição de competências federativas (principalmente sobre a gestão do território rural) e na generalizada fragmentação das esferas de planejamento das políticas públicas no território.
No que concerne à dinâmica política dos movimentos sociais essa fragmentação é evidente. A agenda da reforma urbana foi construída nas metrópoles e dificilmente se transferirá para as médias e pequenas cidades. A agenda da reforma agrária, construída no campo, dificilmente transfere-se para as cidades. Tal fragmentação dificulta a construção de uma agenda comum de caráter territorial que privilegie a qualidade das infraestruturas para a promoção do desenvolvimento econômico e do bem-estar urbano ou rural: a conquista da segurança hídrica e a difusão de tecnologias adequadas de saneamento e conservação das águas; a conquista da segurança no acesso à terra seja para trabalhar, seja para morar; a conquista da inserção em cadeias produtivas curtas e longas seja para gerar riquezas, seja para se alimentar de modo mais saudável, respeitando e valorizando a diversidade cultural. Para isso, o acesso ao crédito e às tecnologias adequadas para empreender precisam ser mais difundidos e baseados sobre a confiança nos saberes que os produtores acumularam nas suas vivências com os seus lugares de vida. Para isso, precisa romper com a arrogância tecnoburocrática que caracteriza muitos aparelhos do Estado brasileiro (Bresser-Pereira, 1972).
Ainda na esfera das dinâmicas políticas dos movimentos sociais e urbanos é preciso ampliar as capacidades para identificar potencialidades e bloqueios que permitam a inclusão ou alheamento de políticas públicas no território: saúde, educação, habitabilidade, combate à pobreza extrema e iniciativas de fortalecimento cultural. Como define o IICA (2013): “Há capacidades fundamentais (aquelas que envolvem as privações básicas, como acesso à educação e a condições mínimas de vida e de saúde), capacidades instrumentais (as que incluem habilidades para a produção, a gestão e o desenvolvimento de atividades ou dimensões específicas da vida econômica, política e social) e capacidades institucionais (aquelas que repercutem sobre grupos sociais ou segmentos inteiros da população das áreas onde se concentra a pobreza)”.
O modelo de desenvolvimento econômico que se pretende, na base da PEC 241, parece fundado na alta remuneração dos setores rentistas, na continuidade do consumo de uma minoria abastada e na arrogância tecnoburocrática, reforçado pela expressão do ódio e da ignorância de segmentos sociais em relação àqueles que mal ergueram a cabeça no período recente, ignora a diversidade e voltará a concentrar investimentos em parcelas do território nacional, onde já estão concentrados.
Na cidade a previsão é de acirramento dos embates que ocorrem em escalas locais entre a concepção de planos estratégicos de City Marketing, envolvendo a realização de grandes eventos e de grandes projetos urbanos, tais como os Waterfront, de um lado, e, do outro, as tentativas de recuperação dos investimentos públicos por meio de instrumentos de gestão urbana e de introduçãode um modelo de desenvolvimento urbano mais inclusivo para a maior parte da população (habitação, mobilidade e saneamento).
No campo, o desmonte do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) certamente compromete fortemente o desenvolvimento de políticas territoriais (Territórios da Cidadania) cujo objetivo principal era fortalecer a agricultura familiar e colocar em prática os direitos à terra dos assentados, indígenas, quilombolas, de modo a valorizar a diversidade cultural do país e a difusão de uma “alimentação adequada e saudável que valorize a sociobiodiversidade e as culturas alimentares”de cuja existência esses segmentos sociais são portadores (Maluf, 2015).
A capacidade de inovação instituída, o investimento e a população mais qualificada também está concentrada, principalmente, nos níveis mais elevados da rede urbana, as metrópoles, e nos demais pontos vantajosos do território por terem recursos minerais, florestais e produções do agronegócio, para a maximização do lucro e do crescimento. Essa tendência ao desequilíbrio da rede urbana e ao acirramento das desigualdades regionais é tanto maior quanto menos desenvolvida for a região e a cidade que a polariza justo porque a menor renda média e pouca importância atribuída às competências inovativas da população reforçam a concentração ainda maior dos investimentos e serviços nos poucos núcleos superiores da rede urbana (Fernandes In: Bitoun; Miranda, 2008)
As transformações econômicas recentes vão impactar fortemente o formato de desenvolvimento agropecuário, industrial e de serviços. Evidencia-se nessa perspectiva a necessidade de valorização das cidades intermediárias localizadas principalmente no interior do país. Nelas os poucos equipamentos existentes, imprescindíveis ao desenvolvimento econômico e social, estarão ainda mais sobrecarregados com o evidente distanciamento de uma plataforma de expansão das políticas sociais de proteção e redistributivas. Dessa forma ficaremos mais distantes de um desenvolvimento socialmente equilibrado, ambientalmente sustentável e politicamente participativo para os municípios brasileiros.
Em um país de dimensões continentais e de exuberante diversidade territorial, é preciso ampliar e fortalecer uma agenda ampla pelo direito à cidade, capaz de reconhecer resistências e contraposições em que se inserem os pequenos e médios municípios. As principais iniciativas de políticas territoriais, de caráter limitado mesmo se às vezes bastantes inovador, resultam da ação dos entes infranacionais, estados e municípios, destacando-se os últimos por estarem mais diretamente influenciados pela qualidade da sociedade civil. Houve então um número significativo de experiências inovadoras em municípios brasileiros, sem que isso compensasse o caráter instável e descoordenado de políticas territoriais nacionais de desenvolvimento regional em múltiplas escalas.

Jan Bitoun e Lívia Miranda
Jan Bitoun é professor de Geografia da Universidade Federal de Pernambuco e integrante da rede de pesquisa INCT Observatório das Metrópoles e da Rede de Pesquisas sobre Cidades Médias – ReCiMe.
Lívia Miranda, doutora em Desenvolvimento Urbano e pesquisadora do INCT Observatório das Metrópoles, é professora-adjunta na Universidade Federal de Campina Grande.


Referências bibliográficas
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Bresser-Pereira L. C.. Tecnoburocracia e Contestação. Petrópolis: Editora Vozes, 1972.
Bresser-Pereira, L. C. http://www.conversaafiada.com.br/brasil/bresser-pereira-perdemos-a-ideia-de-nacao
Bitoun, J.; Miranda, L. Desenvolvimento e cidades no Brasil: Contribuição para o Debate sobre as Políticas Territoriais. Recife: Observatório das Metrópoles, FASE, 2008.
CGEE. Regionalização para o Plano Plurianual PPA – Final Proposta para um Brasil Policêntrico. Brasília, 2007.
IPEA. Caracterização e tendências da rede urbana do Brasil: configurações atuais e tendências da rede urbana / IPEA, IBGE, UNICAMP. Brasília: IPEA, 2001. pp.85-86.
IICA, 2013. Práticas de desenvolvimento no Nordeste do Brasil: experiências dos projetos apoiados pelo FIDA. Brasília: IICA, 2013.
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03 de Novembro de 2016
Palavras chave: Série especialDireito à cidadedesigualdadedesigualdades regionais

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