pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO: "Cultura" do estupro?
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domingo, 31 de julho de 2016

"Cultura" do estupro?


FLÁVIO BRAYNER*
Inquietou-me o fato de ver jornais e noticiários – além de meus colegas universitários – utilizando o termo “cultura” para designar exatamente aquilo que a cultura deveria impedir ou tentar conter: a violência e a barbárie!
A origem latina da palavra (cultivare) referia-se ao ato de cultivar a terra, semeá-la e deixá-la florescer. A palavra, posteriormente, migra para o cultivo do espírito proporcionado pelo contato com as grandes obras dos autores antigos, aqueles que haviam construído a cidade e suas instituições, quer dizer, que haviam promovido, neste ato de construção, nosso afastamento da natureza e do que ela contém de selvagem e de incivilizado.
A cultura permitia que alcançássemos a “Humanitas” que não é sinônimo de “Humanidade” (como conjunto dos homens), mas uma soma de qualidades e virtudes que distinguiriam o civilizado do bárbaro e que passava pela formação da alma. Poderíamos, claro, tomar o conceito de cultura em seu sentido “antropológico”, como conjunto das realizações materiais e espirituais do homem, e aceitar que a barbárie e a violência, como obras humanas, seriam também “culturais”
Ora, a Humanitas fora entendida como um valor universal que, embora até então reservado às elites, o Humanismo moderno e o Iluminismo o universalizariam através da educação - o melhor antídoto para a tirania, a ilusão religiosa, a ignorância e a intolerância. Quanto mais “vergonha” tivéssemos daqueles aspectos primitivos, selvagens e instintivos de nossa personalidade ou de nossas tradições, mais adentraríamos nesta “segunda natureza” chamada cultura.
Com o fim de nossa crença em valores universais, entendidos como etnocêntricos e colonizadores, e a ascensão do relativismo multiculturalista, não somente tudo passou a ser “cultural” como aceitável, em nome do respeito ao outro e sua “visão de mundo” e, assim, fomos destituídos da possibilidade de avaliar as consequências de certos atos culturais segundo critérios supostamente “universais”. Com que legitimidade poderíamos condenar a prática muçulmana de cortar a mão direita de ladrões, se nós também cortamos a cabeça de condenados (no país dos Direitos Humanos Universais, a França)?
A cultura era aquilo que deveria impedir a prática cotidiana do estupro. Mas quando estes dois termos aparecem juntos e não somos mais capazes de perceber sua incompatibilidade semântica, é porque estamos vivendo a época do “estupro da cultura”, em que desabou a antiga ideia de herança cultural, de homem, de universalidade de valores.
*Flávio Brayner é professor-titular da UFPE

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