pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO: Crônicas do cotidiano: Uma crônica para José do Nascimento, "o homem caranguejo".
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sábado, 25 de julho de 2015

Crônicas do cotidiano: Uma crônica para José do Nascimento, "o homem caranguejo".




José Luiz Gomes


Escrevemos muito sobre a comunidade quilombola de São Lourenço, em Goiana, Mata Norte do Estado, que costumamos visitar, com os nossos alunos e alunas, com certa frequência. Chegamos até a produzir artigos científicos sobre o assunto, que foram publicados em periódicos nacionais. Na realidade, há muitas histórias envolvendo aquele local, inclusive o fato de a comunidade, possivelmente, ser remanescente do antigo Quilombo do Catucá, comandado por Malunguinho, um dos maiores do Brasil, de acordo com alguns historiadores, perdendo apenas para o que se formou na Serra da Barriga, em Alagoas, o Quilombo dos Palmares. Malunguinho tornou-se uma entidade do culto Jurema, um ritual religioso de origem afro-indígena, hoje, praticamente circunscrito à fronteira dos Estados de Pernambuco e Paraíba, além do Estado de Alagoas.



Sempre que falamos sobre o assunto, aguçamos a curiosidade de muita gente. As visitas são extremamente concorridas. Alunos de outras turmas e até os pais dos alunos querem nos acompanhar, além de participarem, ativamente, da campanha de donativos que realizamos na cidade onde fica a faculdade. Conheci José do Nascimento, o Jipe, numa reportagem de uma revista de circulação semanal. As repórteres da revista passaram uma semana na comunidade para realizarem uma grande matéria sobre a vida de José do Nascimento, o homem caranguejo, por ocasião do relançamento da obra do sociólogo pernambucano, Josué de Castro, ainda no primeiro Governo Lula.


A matéria tinha como gancho, conforme já afirmamos, o relançamento da obra do sociólogo Josué de Castro. As repórteres escaladas produziram uma grande reportagem, acompanhando o cotidiano daquelas famílias, relatando, com riqueza de detalhes, todas as agruras por ales enfrentadas, como as dificuldades para assegurarem o sustento econômico das famílias, as precárias condições das escolas públicas da comunidade, além da quase ausência de e assistência à saúde. A despeito das oportunidades de trabalho que estão surgindo em Goiana – em razão dos grandes investimentos previstos – a cadeia de sobrevivência da comunidade continua concentrada na captura de caranguejos e mariscos, boa parte comercializados na feira de Rio Doce, em Olinda.


As repórteres fizeram questão de acompanharem a rotina de trabalho de Jipe. Desceram com ele aos manguezais, onde foram produzidos belíssimos flagrantes fotográficos. Apaixonado pelo trabalho de Josué, enxergamos aí uma grande oportunidade de aula de campo quando estivéssemos discutindo a obra do sociólogo, que escolheu a fome como o núcleo mais importante de suas pesquisas. Josué passou a estudar o assunto desde o início de sua vida acadêmica, tendo produzido excelentes pesquisas sobre o tema ainda para cumprir os ritos acadêmicos, muito antes dos clássicos Geografia da Fome e Geopolítica da Fome. 


Apesar de pessoalmente vaidoso, humildemente admitia que havia aprendido muito com os moradores dos mangues do Recife. Os bairros alagados da Veneza pernambucana, como Afogados, Pina, estão presentes em sua obra. Aprendera mais nos mangues do Recife, dizia, do que em todos os compêndios e manuais da Sorbonne, onde chegou a dar aula quando esteve no exílio. No Governo João Goulart, por intermédio do antropólogo Darci Ribeiro, quase foi nomeado ministro de Estado. A conhecida inveja pernambucana o impediu de assumir o ministério.


Seu Jipe e dona Sebastiana são pessoas bastante humildes, que sobrevivem através da captura do caranguejo uçá, hoje escasso na região, sobretudo depois da instalação de fazendas de criação de camarão em cativeiro, que destruiu um manancial incomensurável de manguezais, comprometendo a cadeia de sobrevivência da comunidade remanescente de quilombo. Como agravante, isso já comprovado cientificamente, a ração utilizada para engorda do crustáceo, que se espalha nas águas, compromete a reprodução dos caranguejos. Aquela que seria a segunda maior fazenda de criação de camarão em cativeiro da América Latina, acabou não dando muito certo. Agiu o espírito de Malunguinho, como acreditam os quilombolas, assim como ocorreu com a Base de Lançamento de Foguetes de Alcântara, no Maranhão, onde vários cientistas brasileiros foram mortos pro ocasião de um teste. A base fica localizada num antigo cemitério de negros. Como essa gente, não se brinca, conforme nos advertiram os líderes quilombolas de Alcântara, nos quilombos que conhecemos, na garupa de uma moto. 


À época, denunciamos o fato, mas a empresa já havia, como sempre, obtido todas as licenças dos órgãos que, em tese, deveriam coibir o desmatamento de um bioma protegido constitucionalmente. Nas visitas que fizemos às mais importantes comunidades quilombolas de Alcântara, no Maranhão, sentimos o mesmo drama. Um líder quilombola nos relatou que a Aeronáutica, em função da construção da famosa plataforma de lançamento de foguetes, os afastou tanto de suas fontes de sobrevivência, que, não raro, quando eles conseguiam chegar às suas comunidades, depois do trabalho no mar, o pescado já está estragado.O coco de babaçu, outra fonte de sobrevivência da comunidade, para ser colhido, somente com autorização da Base de Alcântara e em momentos específicos. Pelo que apuramos, a vida nas agrovilas tem sido insustentável. 

Sempre arrecadamos quantidade razoável de alimentos e levamos para a comunidade quilombola de São Lourenço. Somos muito bem recebidos. Os alunos (as), quase todos oriundos da classe média tradicional, ficam assustados ao saberem que os rebentos da comunidade são criados com “leite de caranguejo”, ou seja, com o caldo do cozimento do crustáceo, de onde se obtém, igualmente, um delicioso pirão.


Muito interessante essas aulas de campo. Chegamos à Faculdade local logo cedinho e, com a logística da professora Carminha e o apoio decisivo de Serginho da Burra, conhecida figura dos círculos culturais e religiosos locais, depois de conhecermos a cidade, nos dirigimos para a comunidade de São Lourenço, onde conhecemos, em profundidade, a antropologia daquele ambiente: a comunidade quilombola, as rezadeiras, o culto afro-indígena, a colônia de pescadores, as garrafadas de seu Manuel - que curam de um tudo-, a deliciosa gastronomia local e as manifestações culturais inerentes.


No final, depois de umas boas doses de cachaça e a caldeirada da Irene - já repararam que em toda zona de culinária praieira há sempre uma Irene que prepara a melhor caldeirada? Mergulhamos nas águas mornas da praia de Ponta de Pedras. Desliguem os celulares, por favor, para não sermos incomodados com esse tal de WhatsApp. O mar está liberado e o salva-vidas é nós, mano!

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