pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO: Crônicas do Cotidiano: Literatura de Engenho
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quarta-feira, 1 de julho de 2015

Crônicas do Cotidiano: Literatura de Engenho


 

Confesso que fiquei fascinado pela leitura do livro do professor Diego José Fernandes Freire, "Contando o Passado, Tecendo a Saudade", sobre a construção simbólica do engenho açucareiro em José Lins do Rego. Na realidade trata-se de uma tese, mas escrita sem os rigores - não raro chatos e estéreis - do campo acadêmico. Por sinal, muito bem escrita. Um calhamaço de 400 páginas, capazes de prender a atenção do leitor desde o início até a última página. Somos suspeitos para falar do assunto. Tudo que diz respeito à literatura regionalista nos interessam de imediato. Nossas leituras começaram com os textos de Machado de Assis. Somente depois, bem depois, é que comecei a ler os romances da literatura de engenho, escritos pelo escritor paraibano, José Lins do Rego. Um livro após o outro, verdadeiramente encantado com a vida na bagaceira.  

Começamos e não mais paramos. Os estudiosos costumam estabelecer alguns ciclos específicos de sua produção literária, como os livros que compõem o chamado "ciclo da cana-de-açúcar", que vai do período de apogeu dos engenhos de fogo morto até a sua completa decadência, motivada pelo avanço tecnológico e as mudanças das relações sociais de produção, com o fim do período escravocrata. O próprio escritor cometeu idas e vindas em sua obra, penso que imbuído pelo sentimento de "saudade" dos seus verdes anos no Engenho Corredor, que pertencia ao seu avô. 

Não tivemos a oportunidade de conhecer engenhos na nossa infância. Quando muito, algumas viagens pelos partidos de cana que margeiam a zona da mata do Estado de Pernambuco, ou mesmo a contemplação das inúmeras referências arquitetônicas - já em ruínas - dos antigos engenhos da região. As leituras desses romances nos transportavam àqueles tempos, como num passe de mágica. Ainda hoje, quando penso em proibir meus filhos de brincarem na lama, tomarem um banho de chuva ou mergulharem nos açudes, a lembrança de que nos vem à mente é a do personagem de "Meus Verdes Anos" que, acometido de fortes crises de asma, ficava prostrado numa cama enquanto os moleques faziam suas algazarras nos quintais e alpendres das casas grandes. Como "Meus Verdes Anos" é o mais auto-biográfico dos livros do autor, era o próprio José Lins naquele isolamento imposto pelos familiares. 

A leitura do livro de Diego ampliou bastante nosso conhecimento sobre a literatura de engenho. trouxe-nos alguns fatos novos e, de certa forma, alvissareiros. Em inúmeros momentos, nos deparamos com um  discurso construído em torno da influência do sociólogo Gilberto Freyre sobre o escritor José Lins do Rego. Aliás, coube ao sociólogo de Apipucos a construção desse discurso, salvaguardando as opiniões em contrário. Os dois mantinham uma relação de muita amizade e, de fato, trocavam muitas ideias sobre literatura. Casa Grande & Senzala e Menino de Engenho são quase do mesmo ano. A partir de um determinado momento, poder-se-ia afirmar que os dois faziam uma espécie de "dobradinha". Enquanto Gilberto se dedicava ao ensaísmo histórico, José Lins romanceava a vida nos engenhos. 

O que Diego insinua, no entanto, é que pessoas como Olívio Montenegro,que conhecia muito bem literatura e fez várias indicações de livro para o escritor paraibano, quiçá, possa ter exercido uma influência ainda maior sobre a carreira literária dele do que o autor de Casa Grande & Senzala. Coube a Joaquim Nabuco, no entanto, a condição de precursor da chamada literatura de engenho. Joaquim Nabuco viveu até os 08 anos de idade no Engenho Massangana, que pertenceu à sua família, e que hoje é administrado pela Fundação Joaquim Nabuco. Num dos capítulos do livro "Minha Formação", o diplomata pernambucana abre um espaço para descrever o engenho onde ele passou parte de sua infância, precisamente num capítulo que leva o nome do engenho: "Massangana".

Escrito bem antes da "Bagaceira", de José Américo de Almeida, e "Menino de Engenho", de José Lins do Rego, coube ao pernambucano a primazia de ter, digamos assim, inaugurado a literatura de engenho. Os pernambucanos, aliás, estão muito bem representados na roda literária da literatura de engenho. O romance "Senhora de Engenho", de Mário Sette, outro pernambucano, se configura como outra obra tão importante quanto a de Joaquim Nabuco, no contexto deste circuito literário. Perdão se não usamos o termo correto.

Há algo curioso que sempre mencionamos quando tratamos do Engenho Massangana. No documentário "Cabra Marcado para Morrer" de Eduardo Coutinho, em certo momento, é mencionado que o líder camponês paraibano, João Pedro Teixeira, fugindo dos seus algozes, que já o ameaçavam de morte, vem para Pernambuco e passa a residir em Jaboatão dos Guararapes. Neste mesmo excerto, é posto que ele chegou a trabalhar no Engenho Massangana. 

O romance de Mário Sette também alcançou grande repercussão, tendo sido adaptado para o teatro, com direito à trilha de Capiba, gravada por Nelson Gonçalves. Trata-se da conhecida "Maria Betânia". O livro de Mário contou com várias edições, tendo vendido bastante para os padrões da época. O mais importante, entretanto, é que foi muito bem recebido pela crítica. Mário Sette, diferente de José Lins, Joaquim Nabuco e Gilberto Freyre, não foi um menino de engenho, na verdadeira acepção da palavra. Menino urbano, filho de comerciantes, sem as contas pagas pela família, Mário não conheceu la dolce vita. Conta os familiares que, numa viagem à cidade de Tracunhaém, a trabalho, em idos bem remotos, Mário apaixonou-se pela cidade e resolveu escrever seu romance rural. Ao contrário de Nabuco, Mário Sette também não teria avançado muito nos círculos acadêmicos, tendo concluído apenas o ensino médio. 

Mário escreveu bastante, em mais de um gênero. No site mantido pela família é possível ter a dimensão dessa produção literária. Veja o que diz o seu filho, Hilton Sette, sobre a experiência do pai, que, conforme já afirmamos, foi até à cidade de Tracunhaém, inspecionar a agencia postal local:


Meu pai evoca em MEMÓRIAS ÍNTIMAS e em APONTAMENTOS AUTOBIOGRÁFICOS (inéditos) as suas reações de agrado e encantamento experimentadas nessa curta e imprevista excursão à Zona Canavieira. Numa certa manhã, a novidade de uma viagem de trem, o sol a doirar o verde da paisagem, os partidos de cana beirando a linha férrea, ocorrências de matas coroando os cimos das elevações, o rumorejar de riachos nos fundos dos vales, aqui e ali a presença de banguês com suas casas-grandes, suas "moitas", seus bueiros fumegantes, seus aromas de mel cozinhando.

A primitiva vila semi-rural acolheu-o e cativou-o com o pitoresco do arruado e com a hospitalidade de sua gente. A simplicidade do casario em redor da igreja, o pátio relvado com peças de roupa a "quarar", a brisa cheirando a mato, os dedos de prosa com os que iam postar ou buscar correspondência, o almoço oferecido pelo Agente Postal, depois de cumprida a inspeção. E, à tardinha, o regresso, enquanto as sombras cresciam, a aragem refrescava ainda mais, a quietude envolvia todo o cenário, e o futuro autor de SENHORA DE ENGENHO trazia na lembrança para ali localizar o engenho Águas Claras do Coronel Cazuza.

Como essa "construção discursiva" não se limita tão somente à literatura, afinal, Diego foi orientando de Durval Muniz,coube ao também menino de engenho, o pintor Cícero Dias, retratar, através dos seus quadros, o universo dos engenhos - um conceito bem mais amplo - que não se resume apenas à arquitetura e nem ao maquinário, mas a todo um complexo de vivências, para fazer jus à letra da música da Banda de Pau e Corda. Cícero, aliás, foi o pintor preferido dos escritores da chamada literatura de engenho. Bem nascido, o pintor pernambucano passou a infância em três engenhos pertencentes aos seus familiares.

José Luiz Gomes 

P.S.: Convém fazer aqui algumas considerações. Apesar de inicialmente ambientado num engenho, a narrativa do livro de José Américo de Almeida, A Bagaceira, apresentado como a obra inaugural da literatura regional, não se resume a uma obra que trata das vivências do universo simbólico dos engenhos. Daí, portanto, não ser classificada como "literatura de engenho". Por outro lado, como deve-se estabelecer a distinção entre literatura regional e literatura de engenho, a obra de José Américo, salvo opinião em contrário, continua com o status de obra seminal da literatura regional.  

5 comentários:

  1. Olá José Luiz Gomes!!

    Muito obrigado por comentar tão bem meu livro. Fico feliz pelo espaço e mais ainda por você ter gostado do trabalho. Vejo que você captou bem os pontos importantes do livro, como a influencia freyreana em José Lins e a questão da literatura de engenho. Espero que o diálogo entre nós continue!

    Um forte abraço e parabéns pelo blog muito interessante. Voltarei!

    Diego Fernandes

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    1. Boa noite, Diego Fernandes!

      Nós é que ficamos feliz em ter lido um trabalho que nos acrescentou tanto em termos de informações e discussões teóricas acerca dessa unidade "imagética-discursiva" sobre a literatura de engenho. Há um ensaio do conselheiro João Alfredo, outro grande abolicionista, "Minha Meninice", que, se você ainda não leu, precisa ler e ver como ele se insere no contexto da "Literatura de Engenho". De família nobre, João Alfredo viveu no Engenho Uruaé, localizado na Ilha de Itamaracá. O professor Manuel Correia de Andrade escreveu uma biografia sobre o abolicionista. A lista de orientandos do mestre de Apipucos é enorme, envolvendo pessoas das mais distintas áreas do conhecimento: antropologia, história, sociologia, museologia, literatura, biblioteconomia. Em parte, essa grupo também ficou conhecido como "gilbertólogos", estudiosos que viviam sob o guarda-chuva intelectual de Gilberto Freyre. Creio que, entre Gilberto e José Lins, utilizando um termo seu, creio ter havido uma espécie de cumplicidade nessa estratégia da consagração. A leitura é sempre algo muito positivo. Lendo uma tese de doutoramento sobre a cidade fábrica de Paulista, aqui na região metropolitana do Recife, descobri, veja que curioso, que o "Moleque Ricardo", na ficção de José Lins, chegou a ser operário da Companhia de Tecidos Paulista, antes de se exilar em Fernando de Noronha. Um forte abraço e o diálogo sempre estará aberto. O blog tem uma identidade mais política. Grato pelo incentivo. Volte sempre! Até breve.

      José Luiz Gomes

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  2. Grato pela referência, José Luiz. Realmente, não conheço esse texto, mas vou desde já caça-lo. Como você bem percebeu, a noção de literatura de engenho é bem ampla, de modo que cobre muitos textos e autores.

    Sério?Que interessante! Realmente o Zé LIns tirava seus personagens da vida real. Mas esse moleque Ricardo aí também foi moleque de bagaceira?

    Abraços

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  3. Mais uma vez obrigado pela presença, Diego Fernandes. Certamente, em qualquer circunstância, o livro "Minha Meninice" deverá ser importante para as suas reflexões sobre a literatura de engenho. Como você mesmo informa, a noção de literatura de engenho é ampla. É possível que o livro possa contestar ou reforçar algumas teses levantadas. Devo concordar com você e com Gilberto Freyre sobre a avaliação do livro "O Moleque Ricardo", como sendo, talvez, o momento de menor inspiração do autor de "Menino de Engenho". Ricardo foi um menino de bagaceira e teve uma vida muito sofrida, conforme a narrativa de José Lins, cheia de baixos e baixos(sic). O fato de ter passado pela Companhia de Tecidos Paulista, por si só, expõem as mazelas que teve que enfrentar na vida, submetidos às condições humilhantes impostas pelo capital, sem outra alternativa. Um forte abraço. Apareça sempre.

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  4. Apenas um reparo, caro Diego Fernandes Freire. Não sei se você necessariamente concorda com a avaliação do sociólogo Gilberto Freyre sobre o livro "O Moleque Ricardo", de José Lins do Rego. Abraços.

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