pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO: Antonio David: Crítica e autocrítica sobre o PT na política brasileira.
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sábado, 14 de março de 2015

Antonio David: Crítica e autocrítica sobre o PT na política brasileira.


publicado em 13 de março de 2015 às 20:26
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Crítica e autocrítica
por Antônio David, especial para o Viomundo
Nesse artigo, pretendo discutir a intervenção da esquerda na conjuntura política brasileira, mais especificamente o exercício da crítica e da autocrítica. Para tanto, tomarei como base artigo publicado recentemente no Correio da Cidadania, de autoria do jovem cientista político Henrique Costa, intitulado O PT e seu eterno retorno.
Henrique expressa um ponto de vista representativo de uma corrente de pensamento, que genericamente podemos chamar de “oposição de esquerda”. De minha parte, pretendo expor um raciocínio divergente.
Tanto eu como Henrique não somos nomes de relevo no debate público no Brasil. Peço ao leitor que ignore este fato e atenha-se, na medida do possível, ao raciocínio contido em cada artigo. Que considere os argumentos. Pois, mesmo que mal formulado e expresso por um nome desconhecido, um raciocínio contém potencialmente a chave para a solução de impasses. Se a solução para os impasses vividos pela esquerda brasileira puderem ser extraídos de um exercício de crítica e correção dos argumentos aqui levantados, o artigo terá cumprido seu papel.
Não vou me ater a questões do artigo de Henrique que me parecem discutíveis, mas que não são centrais em seu raciocínio, tal como “Uma parte significativa da classe média já foi petista”, ou a leitura que se pode fazer dos dados da pesquisa Datafolha mencionados no artigo: “Mas o Datafolha nos diz que 36% das pessoas com renda de até 2 salários mínimos e 46% das pessoas com renda entre 2 e 5 salários mínimos rejeitam a presidente. Quem está certo?”.
Para melhor expor o raciocínio, dividi o artigo em quatro partes.
1) Penso que Henrique toca naquela que talvez seja a questão mais relevante para a esquerda brasileira:
O lulismo vai sendo encoberto pelo deserto de ideias e pela queima rápida e gradual do capital político acumulado de 2003 a 2008”.
Dito de outro modo, há um acúmulo, há uma conquista, e há o risco de um desacúmulo, de uma derrota. E entre um e outro há uma relação problemática: quanto mais o tempo passa e mais pessoas são incluídas, mais difícil é manter o ritmo da inclusão. Daí a insatisfação ou inquietação dos que foram recém-incluídos (nova classe trabalhadora), algo diferente do ódio ao PT vindo dos que já eram incluídos (classe média tradicional).
Haverá divergências na esquerda sobre a natureza e o grau da conquista e do horizonte da derrota, mas, expressa dessa maneira, em termos muito genéricos, o problema parece bem colocado.
De que maneira Henrique lida com esse problema? Ou seja, como ele identifica as raízes ou causas tanto das conquistas como da possibilidade da derrota?
2) Penso que Henrique consegue localizar a causa quando faz menção a “questões de ordem política e organizacional”.
“O problema de algumas análises, mesmo as mais consistentes e sensatas, é que veem a raiz dos atuais problemas do PT como resultado de um mérito, a política para os pobres. Assim, questões de ordem política e organizacional, intrínsecas à conformação que o partido adotou durante seus mais de trinta anos e ao modelo de governabilidade que hoje se mostra esgotado, perdem relevância para, no fim, serem justificadas pelo “ódio” das classes abastadas. Servem para diminuir a responsabilidade de atores políticos que nem sempre tiveram bons modos”.
De fato, a raiz do problema reside na política e na organização. É nestes campos que a esquerda terá alguma chance de avançar. Todavia, se é na política e na organização que residem os impasses vividos pela esquerda, a pergunta que deveríamos tentar responder é: o que levou o PT a ter ou a adotar certa política e certa organização, e não outra – isto é, e não aquela que supostamente o PT deveria ter ou adotar?
Henrique não fez essa pergunta. Como ele não a faz, ele não tentou respondê-la. E não a tendo respondido, ele incorreu num erro grave: foi obrigado a enxergar o PT não pelo que o PT é, mas pelo que o PT não é. (Daí a ocorrência de termos que começam com -in: “incapacidade” e “inapitidão”). Ora, se o PT é supostamente incapaz e inapto a cumprir certas tarefas, caberia investigar quais tarefas o PT cumpre com capacidade e aptidão. Afinal, é provável que o PT não consiga cumprir certas tarefas exatamente porque está cumprindo outras tarefas.
De minha parte, eu faria as seguintes perguntas: Será que a política e a organização que o PT tem hoje não são exatamente fruto do esforço levado a cabo de fazer “política para os pobres”? Será que o PT poderia ter chegado onde chegou e ter feito o que fez sem exatamente a política e a organização que assumiu? Será que o PT poderia ter o “mérito” que Henrique parece reconhecer e, ao mesmo tempo, ter outros méritos, aqueles que Henrique reclama? Em suma, será que o PT poderia ser o PT da “política para os pobres” e, ao mesmo tempo, o PT tal como Henrique reivindica?
Tais perguntas são tão mais relevantes quando se constata que, no fundo, quem faz as “análises consistentes e sensatas” mencionadas por Henrique não faz outra coisa senão jogar luz exatamente nesse leque de questões, que constituem um verdadeiro impasse. Porém, ao invés de encará-lo e discuti-lo, Henrique esquivou-se dele.
Para mim, considerando a pobreza do atual quadro do debate público na esquerda brasileira, importa menos a resposta a essas perguntas; mais importante é o reconhecimento de que estas perguntas merecem ser feitas e respondidas.
3) Se Henrique tivesse enfrentado o impasse que tais perguntas evocam, ele teria sido obrigado a fazer uma crítica totalizante da sociedade brasileira e da esquerda brasileira como um todo. Ele possivelmente seria obrigado a enfrentar questões como: Qual é a natureza e o real tamanho da pobreza no Brasil? Qual é o perfil e quais são as divisões no interior da classe trabalhadora no Brasil? Que tipo de política de massas a sociedade brasileira permite? Quais são as blindagens do Estado brasileiro? Teríamos de recorrer a toda uma tradição de pensamento crítico, infelizmente um tanto marginalizada, como Caio Prado Jr., Florestan Fernandes, Raymundo Faoro.
Note-se: no fundo, questões mais prosaicas e ordinárias (tais como “É possível reduzir a pobreza e incluir sem ter de se subordinar à lógica da governabilidade”) pressupõem respostas para aquelas perguntas. O problema é que nem aquelas perguntas nem suas respostas costumam aparecer no debate público. Há entre nós um campo opaco em que as questões de fundo, as que realmente importam, permanecem escondidas.
Ademais, se tivesse enfrentado aquelas questões, Henrique teria sido obrigado ainda a fazer uma autocrítica, tanto pessoal como dos grupos aos quais ele foi (ou é) associado. Mas isso ele não fez. E justamente por não ter feito, o artigo soa como uma sátira: enquanto Henrique acusa o PT de evocar a “ignorância alheia” (para o PT, ignorantes são os outros) – de fato o PT faz isso –, ele próprio incorre nesse mesmo argumento, pois a mensagem de seu artigo não é outra senão: ignorante é o PT.
Aqui, ao discutir a autocrítica no artigo de Henrique, faço a minha própria autocrítica.
Cito três passagens:
“Como se diz no jargão popular, há males que vêm para o bem. No caso do PT, há males que vieram para o mal mesmo. O afastamento compulsório da antiga burocracia partidária, resultado do julgamento do mensalão, poderia ter produzido uma renovação partidária, uma profunda mirada autocrítica e a busca por soluções arejadas e democráticas, em sintonia com as aspirações políticas de um novo momento, de novos interlocutores. Mas o único resultado desse processo foi a acomodação partidária de várias correntes e a ascensão de quadros de segundo escalão talhados nas mesmas práticas e sem a metade da capacidade de análise de conjuntura e gestão de crises”.
Essa passagem soa como uma confissão. Aliás, o artigo inteiro. Pois, se o PT é o alvo de Henrique, se o PT é “incapaz” e “inapto”, se o PT cometeu erro atrás de erro, se, enfim, a culpa é do PT, é forçoso notar o pressuposto deste raciocínio: quem diz isso parte do pressuposto (nunca dito abertamente) de que, ao fim e ao cabo, o ator que realmente importa e que tem real relevância na conjuntura brasileira é o PT. É como se, ao escrever este artigo, Henrique tivesse dito: o PT não é capaz de fazer o que só o PT pode fazer. Senão, como explicar que só o PT seja criticado?
Se a “renovação partidária” (do PT) e se a “busca por soluções arejadas e democráticas” (por parte do PT) teria sido tão importante, tão central, tão decisiva, eu pergunto: que esforço Henrique fez no sentido de produzi-la?
Henrique só poderia ter tomado parte nesse esforço se ele estivesse filiado no PT, ou no campo petista, ou pelo menos se ele não estivesse no campo antipetista. Penso não ser absolutamente necessário estar no PT para participar deste esforço, nem mesmo é necessário ser petista. Se a sociedade brasileira é polarizada entre petismo e antipetismo, basta não estar no campo antipetista.
Mas tanto Henrique como eu saímos do PT exatamente no momento mencionado por ele no artigo (no bojo do escândalo do mensalão), quando tomamos parte num projeto antipetista.
Ao termos saído do PT, não só nos abstivemos de tomar parte nessa luta, como nos engajamos num projeto político que, para tentar se viabilizar, era (em alguma medida, ainda é) obrigado a fazer propaganda ostensiva da inviabilidade dessa renovação. Assim, nós contribuímos para a não renovação do PT duplamente: primeiro, por termos abdicado de tomar parte desse esforço de renovação; segundo, já fora do PT, quando nos engajamos em difundir a crença de que esse esforço era em vão.
Como Henrique lida com o peso dessa incoerência?
Primeiro, cobrando do PT autocrítica.
“A autocrítica nunca foi um forte da esquerda brasileira”.
A cobrança é justa. Convém ao PT o exercício da autocrítica. Todavia, é forçoso constatar: Henrique cobra do PT aquilo que ele próprio evita fazer, quando seu raciocínio o obriga a fazer. Nisso reside a sátira.
Segundo, criticando a atitude do PT em atribuir aos outros a pecha de ignorante.
“A ignorância alheia é sempre um antídoto suficientemente eficaz para jogar responsabilidades, análises equivocadas e atitudes questionáveis para debaixo do tapete”.
Igualmente, a crítica é justa. A insatisfação desceu. Não é apenas a classe média golpista que está insatisfeita. A nova classe trabalhadora – que galgou conquistas graças aos governos Lula e Dilma – está cada vez mais inquieta e insatisfeita. Porém, ao imputar ao PT a responsabilidade exclusiva pelos impasses da conjuntura, e ao fazê-lo nestes termos (“incapacidade”, “inaptidão”), ele, Henrique, incorre no mesmo erro que ele próprio critica: qual seja, ao invés de buscar a responsabilidade coletiva (da qual o PT é apenas uma parte), ele se vale do recurso da “ignorância alheia”. Acaso foi só o PT que fez análises equivocadas e que tomou atitudes questionáveis? Ao evitar fazer uma crítica totalizante da esquerda brasileira, aqui também foi suficiente o antídoto da ignorância alheia.
Antes de entrar no quarto e último ponto, cabe dizer que, passados quase dez anos, a almejada alternativa à esquerda do PT não se viabilizou, nem eleitoralmente, nem na sociedade. E se hoje o antipetismo é matizado na “oposição de esquerda” em relação a dez anos atrás, ele ainda é um assunto mal resolvido entre aqueles que comungam das ideias de Henrique, mesmo entre os menos antipetistas. Penso que é, ao menos em parte, o fato de aquelas perguntas serem evitadas que faz do antipetismo um assunto ainda mal resolvido para este campo.
4) Como Henrique incorre no equívoco que ele próprio apontou ao atribuir os impasses da conjuntura à ignorância do PT, ele se sente confortável para sustentar que a movimentação oposicionista em marcha (deem o nome que quiserem) é, no fundo, fruto da ignorância do PT. O desfecho não poderia ser outro:
“Assim, o partido incorpora o eufemismo do “terceiro turno” e assume de vez que cidadão serve para votar a cada dois anos, e no meio tempo reclamação é tentativa de golpe”.
Eu pergunto: por trás da insatisfação difusa e heterogênea (quem está insatisfeito não é exatamente “o cidadão”, mas uma pluralidade recortada e atravessada por divisões), acaso não há tentativa alguma de golpe? Acaso a palavra “impeachment” não está sendo pronunciada? Podemos dormir tranquilos, confiantes de que tudo não passa de um blefe?
“Não que a mídia ou uma parte relevante da classe média-alta brasileira não tenham suas predileções, preconceitos e udenismos e, a partir deles, métodos questionáveis que, em última instância, são constitutivos do nosso capitalismo periférico. Doze anos depois de chegar ao poder, a esquerda brasileira, no entanto, recorre ao mesmo expediente, confundindo manifestações que, gostemos ou não, são legítimas em uma democracia – o que não nos impede de renegá-las ou considerá-las grosseiras –, com golpismo, o que tem, como essência, a vitimização do partido no poder e, evidentemente, de seus burocratas”.
Insisto em perguntar: por trás da insatisfação, será que não existe golpismo algum?
(É evidente que a manifestação é legítima. A defesa da “legitimidade” da manifestação só faria sentido se alguém estivesse propondo impedir que a manifestação acontecesse. Não é a legitimidade que está em questão. Ao fazer a defesa da legitimidade da manifestação, Henrique derrapa, perde de vista um ponto central em prol de uma questão que nem em discussão está).
Henrique parece estar tão imbuído da convicção de que, no fundo, a culpa é do PT, ou, mais precisamente, da ignorância do PT, que até mesmo a movimentação oposicionista em curso tem um único e exclusivo responsável: o PT e sua ignorância (expressa através das palavras “incapacidade” e “inaptidão”).
Ao invés de buscar a “responsabilidade dos atores” (como se em política, vista sob a ótica da longa duração, pudesse haver pura e simplesmente “responsáveis”), penso que seria mais proveitoso se tentássemos abordar o problema apontado por Henrique, da “queima rápida e gradual do capital político acumulado de 2003 a 2008”, olhando para a totalidade da sociedade brasileira e efetuando uma crítica de fundo da esquerda brasileira como um todo. Mas isso terá um preço, que não estamos acostumados a pagar: ao lado da crítica, teremos de fazer a autocrítica.
Antônio David desenvolve pesquisa de doutorado no Departamento de Filosofia
(Publicado originalmente no site Viomundo)

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