pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO: O que há de errado( e de bom) no capitalismo
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sábado, 7 de junho de 2014

O que há de errado( e de bom) no capitalismo

PAULO BRABO, 07 DE JUNHO DE 2014

O QUE HÁ DE ERRADO (E DE BOM) NO CAPITALISMO

Estocado em MANUSCRITOS
Foto: Alexey Titarenko
O trajeto usual é este: quem se aproxima do soci­a­lismo é porque sente que há algo de errado com o capitalismo.
Como neste mundo o capi­ta­lismo é pra­ti­ca­mente tudo que existe, é rela­ti­va­mente raro que as pessoas enxerguem no sistema (que é o seu mundo) falhas que as levem a concluir que o sistema precisa ser revisto ou subs­ti­tuído. Essa infrequên­cia tem diversos motivos, mas deve-se antes de tudo à pro­fun­di­dade das trans­for­ma­ções que o regime capi­ta­lista produziu no rastro da sua ascensão.
O capi­ta­lismo existiu em regime embri­o­ná­rio em todas as gerações dos homens, mas foi por milênios contido por res­tri­ções técnicas, morais e reli­gi­o­sas. O emprés­timo de dinheiro a juros, por exemplo, é essencial para o fun­ci­o­na­mento do capi­ta­lismo e indis­tin­guí­vel dele, mas foi con­si­de­rado imoral na Europa católica por mais mil anos. Para nascer o capi­ta­lismo teve que esperar que a Reforma Pro­tes­tante impri­misse à usura a divina credencial.
Para des­lan­char o potencial represado da sua visão de mundo o capi­ta­lismo só teve de aguardar o sole­va­mento das últimas res­tri­ções, aquelas tec­no­ló­gi­cas, à sua ascensão. A Revolução Indus­trial resol­ve­ria esse problema para sempre.
Todos os poderes têm algum potencial equa­li­za­dor. Todos podem ser usados em alguma medida para promover a justiça, até o momento em que não. Nos cem anos entre 1850 e 1950 o capi­ta­lismo exerceu for­mi­da­vel­mente o potencial equa­li­za­dor do seu poder.

A face boa do capi­ta­lismo: um mundo menos desigual

O sucesso da evan­ge­li­za­ção capi­ta­lista reside em grande parte na singeleza da sua boa nova: se quiser, caro leitor e ouvinte, você pode ficar rico. Todas as res­tri­ções que tra­ba­lha­vam para impedi-lo de beneficiar-se do seu potencial foram abolidas.
A enorme distância cultural que separa 1850 de 1950 é explicada pelo sucesso universal dessa ideia.
A um mundo cansado de se curvar diante de arti­fi­ci­a­li­da­des e de sustentar a sua per­pe­tu­a­ção, a Revolução Francesa já havia arti­cu­lado o sonho equa­li­za­dor de igualdade, liberdade e fra­ter­ni­dade. Porém a Revolução Indus­trial acenou com uma promessa de justiça embasada na realidade e não na poesia. A vitória da indústria parecia esta­be­le­cer um poder demo­crá­tico por natureza, um poder que acabaria se trans­fe­rindo natu­ral­mente para a mão dos mais capazes e mais mere­ce­do­res: a posse do capital.
Colocado em movimento, o capi­ta­lismo começou a demolir ime­di­a­ta­mente dis­tin­ções entre as pessoas que haviam per­ma­ne­cido por milênios fixas e indis­cu­ti­das. A mobi­li­dade social demons­trou que o tra­ta­mento pre­fe­ren­cial que a sociedade dis­pen­sava a deter­mi­na­das classes, e que todos agiam como se fosse coisa natural, era na verdade uma invenção con­ve­ni­ente, uma farsa contada de modo a manter intatas as estru­tu­ras de dominação.
Pouco a pouco todas as classes de pessoas foram sendo enten­di­das como livres e iguais – nobres e pobres, homens e mulheres, ex-escravos e pro­fes­so­res, negros e brancos, cidadãos e estran­gei­ros, açou­guei­ros e pastores. Ninguém podia se dar ao luxo de considerar-se melhor do que ninguém, porque as opor­tu­ni­da­des do mercado estendiam-se demo­cra­ti­ca­mente diante de todos.
Com essa mensagem e o imenso lastro da sua vocação ao sucesso, o capi­ta­lismo serviu para des­mas­ca­rar mundo afora for­ja­du­ras e ide­o­lo­gias que tinham estado em vigor por milênios. O mundo final­mente entendeu que os critérios que garantiam poderes e pri­vi­lé­gios aos reis, aos nobres e aos sacer­do­tes eram intei­ra­mente arbi­trá­rios, méritos imputados a eles sem nenhum fun­da­mento cor­res­pon­dente na realidade.
A eficácia com que o capi­ta­lismo denunciou e desarmou as ide­o­lo­gias de dominação que pre­va­le­ciam antes dele é lembrada com frequên­cia pelos seus defen­so­res. Quaisquer injus­ti­ças de que o capi­ta­lismo seja culpado nos nossos dias, insistem eles, não são para comparar com as injus­ti­ças do mundo que havia antes.

A outra face do capi­ta­lismo: um mundo cada vez mais igual – e cada vez mais desigual

O sucesso do capi­ta­lismo parece mais for­mi­dá­vel na medida em que ignoramos que ele se fun­da­menta em pro­mis­só­rias que são cobradas das gerações futuras – ou de gerações presentes que estão distantes do nosso olhar. Grande parte das reservas levan­ta­das contra o capi­ta­lismo nascem pre­ci­sa­mente da sua eficácia em vencer culturas com­pe­ti­do­ras e abafar a voz dos seus críticos. Alguns de nós entendem que nenhuma ideia humana deveria ter cacife para apagar da com­pe­ti­ção todas as outras, mas é pre­ci­sa­mente essa a pegada e o efeito do capitalismo.
► o capi­ta­lismo é uma monocultura
O apelo de nar­ra­ti­vas de fantasia como O Senhor dos Anéis e Game of Thrones reside em grande parte nisto: são histórias que falam de mundos em que subsistem, colaboram e competem uma diver­si­dade de culturas, enquanto o nosso próprio mundo se mostra cada vez mais uma cultura única.
A ideologia capi­ta­lista parte do pres­su­posto de que não importa o seu sexo, idade, religião, tradição nacional, bagagem cultural ou pre­fe­rên­cia pessoal, você irá desejar a mesma coisa – o mesmo preciso modo de vida – que os demais bilhões de habi­tan­tes do planeta. Não importa se você nasceu no sertão do nordeste, numa várzea fértil da Índia, num vale remoto da Itália, numa cidade litorânea da Austrália, num vilarejo do Iraque ou numa aldeia pendurada no Himalaia ou nos Apeninos: você vai sentir a irre­sis­tí­vel vocação de deslocar-se para uma escola, para uma fábrica, para um cubículo, para uma sala de reuniões, para um con­do­mí­nio fechado, para um escri­tó­rio envi­dra­çado num edifício moder­nís­simo – o que for mais com­pen­sa­dor ou mais rápido.
Você vai querer a liberdade de ter as mesmas máquinas, assinar os mesmos serviços, pagar pelas mesmas atu­a­li­za­ções, reclamar das mesmas ninharias: ter no bolso um retângulo cujo mágica se compare à do retângulo do seu colega, e em casa uma tela maior.
O sistema tem meca­nis­mos de controle e não vai permitir que você se sinta completo ou realizado se não se conformar ao perfil urbano, a um modo de vida que lhe permita consumir o que desejam consumir todos que habitam a cidade com você. Dica: você não vai querer ser agri­cul­torpintor de car­ro­ce­rias de caminhãofabri­cante de cestos oupastor de ovelhas. Entre outras coisas, você não con­se­gui­ria conviver com o sen­ti­mento de ina­de­qua­ção. O capi­ta­lismo lhe terá con­ven­cido de que para alcançar o status de pessoa única será neces­sá­rio você se conformar ao que fazem todos.
► o capi­ta­lismo elimina culturas e modos de vida
O capi­ta­lismo de mercado está tão convicto de seu status de solução universal para todas as soci­e­da­des que não pausa um instante sequer para lamentar a perda, ao redor do mundo, de uma infi­ni­dade de culturas e modos de fazer que o seu avanço eliminou ou colocou em grave risco de extinção.
A lista de culturas riscadas do mapa pelo capi­ta­lismo é longa demais para ser resumida, mas são extinções com muitos aspectos em comum. Jovens do interior são con­fis­ca­dos para os grandes centros em busca do batismo expi­a­tó­rio das escolas, sem o qual estarão todos con­de­na­dos à ina­de­qua­ção. Pequenos pro­du­to­res só con­se­gui­rão comer­ci­a­li­zar a sua produção se se dobrarem às exi­gên­cias dos grandes con­glo­me­ra­dos (ou só con­se­gui­rão sobre­vi­ver vendendo a esses con­glo­me­ra­dos as suas pro­pri­e­da­des). As tradições de vilas, cidades remotas e comu­ni­da­des rurais morrem gra­du­al­mente, perdendo a vida e a cor pela trans­fu­são sem volta dos mais jovens para as metrópoles.
Vocações e modos de vida pacatos e ide­a­lis­tas – fran­cis­ca­nos, freiras, monges budistas, pastores de ovelhas, pes­ca­do­res, alfaiates, sapa­tei­ros, tipó­gra­fos, ser­ra­lhei­ros, lavra­do­res, pequenos comer­ci­an­tes locais e artesãos de toda a sorte – mínguam sem suces­so­res e sem que ninguém entenda o fascínio e o sub­ver­sivo prestígio que já representaram.
► o capi­ta­lismo se apropria das imagens das culturas que eliminou
Em A sociedade do espe­tá­culo (1967) Guy Debord aponta que o regime capi­ta­lista reduziu a expe­ri­ên­cia à con­tem­pla­ção de uma sucessão de imagens: “tudo que era antes vivido dire­ta­mente tornou-se mera repre­sen­ta­ção. A vida real é absorvida mate­ri­al­mente pela con­tem­pla­ção do espe­tá­culo, e acaba alinhando-se a ela”.
O capi­ta­lismo se apropria das imagens das culturas que eliminou, expondo-as e beneficiando-se delas como se ainda exis­tis­sem. As emba­la­gens de leite e de suco de laranja mostram imagens de casas e tra­ba­lha­do­res rurais intei­ra­mente inte­gra­dos na natureza – emblemas de modos de vida que a própria con­ve­ni­ên­cia da produção em massa e das emba­la­gens longa-vida tornou inviáveis e eliminou da exis­tên­cia. O capi­ta­lismo ignora esse paradoxo como ignora todos os demais, limitando-se a endossar com des­ca­ra­mento e sem pausa todas as farsas que as imagens que seques­trou ajudam a sustentar.
World Showcase do parque Epcot, da Disney, é um mundo em miniatura: uma sucessão literal e pronta para o consumo de “imagens sig­ni­fi­ca­ti­vas” de onze países, entre os quais estão China, Itália, França, Marrocos e Canadá.
Mas o World Showcase é também uma miniatura do mundo, porque em todo lugar o capi­ta­lismo exige que con­su­ma­mos a imagem de uma cultura ao invés de nos sub­me­ter­mos, no confronto com outra cultura, a um encontro com o Outro. Não só você consome a imagem de Veneza e de Paris no parque da Disney; na Veneza e da Paris da vida real você não espera consumir mais do que um parque: não uma cultura, mas imagens e encontros ima­gi­ná­rios em sucessão. Consumo e repre­sen­ta­ção em lugar de assi­mi­la­ção, confronto e crescimento.
► o capi­ta­lismo aliena o tra­ba­lha­dor de tudo que diz respeito ao trabalho
A ideia de que o capi­ta­lismo produz alienação – um dis­tan­ci­a­mento entre o homem e a porção mais essencial de si mesmo – é fun­da­men­tal na crítica de Marx.
A linha de produção afasta o tra­ba­lha­dor do produto do seu trabalho, visto que o que cada um vê é sua par­ti­ci­pa­ção limitada – seu girar do parafuso – num processo maior do que ele e sobre o qual ele não tem controle. Trabalho numa fábrica de auto­mó­veis e não tenho um.
Porém o capi­ta­lismo gera todo um leque de relações humanas sobre as quais o tra­ba­lha­dor não tem qualquer controle. Marx está par­ti­cu­lar­mente pre­o­cu­pado com as con­sequên­cias desu­ma­ni­zan­tes da renúncia, por parte do pro­le­tá­rio, de sua capa­ci­dade de autodeterminação.
O regime capi­ta­lista requer que o tra­ba­lha­dor deixe de agir como entidade autônoma, capaz de deter­mi­nar o seu destino, e passe a operar como entidade econômica, uma ferramenta/engrenagem da qual o capi­ta­lista dispõe como bem entende. Essa transação é desu­ma­ni­zante, antes de tudo porque ninguém ignora que o capi­ta­lista deseja extrair do tra­ba­lha­dor o máximo de produção pelo mínimo de reco­nhe­ci­mento: sua sobre­vi­vên­cia no sistema depende da sua capa­ci­dade de manter arti­fi­ci­al­mente essa distância.
Isso num sistema em que todos os com­po­nen­tes, não importa em que patamar se encontrem, sabem-se des­car­tá­veis e sentem-se portanto desu­ma­ni­za­dos. O capi­ta­lista está com­pe­tindo com outros capi­ta­lis­tas, o tra­ba­lha­dor está com­pe­tindo com outros que podem querer o seu lugar.
Marx:
Supo­nha­mos agora que tivés­se­mos executado a produção como seres humanos. Cada um de nós teria, de dois modos, afirmado a si mesmo e à outra pessoa. [1] Em minha produção eu teria obje­ti­fi­cado a minha indi­vi­du­a­li­dade, seu caráter espe­cí­fico, e teria portanto des­fru­tado não só de uma mani­fes­ta­ção indi­vi­dual da minha vida durante a atividade, mas também, olhando para o objeto, teria o prazer indi­vi­dual de saber que minha per­so­na­li­dade é algo objetivo, visível aos sentidos, e portanto um poder além de qualquer dúvida. [2] Quando você estivesse usu­fruindo ou uti­li­zando o meu produto eu teria o prazer direto tanto da cons­ci­ên­cia de ter com meu trabalho satis­feito uma neces­si­dade humana, ou seja, de ter obje­ti­fi­cado a natureza essencial do homem, quanto o de ter criado um objeto cor­res­pon­dente à neces­si­dade da natureza essencial de uma outra pessoa. Nossos produtos seriam desse modo muitos espelhos nos quais veríamos refletida nossa natureza essencial.
O seu smartfone é uma maravilha do mundo. Porém quem quer pirâmides tem de suportar escravos.
► o capi­ta­lismo mantém fora do nosso campo de visão as injus­ti­ças mais brutais do sistema
Em uma de suas sacadas mais bri­lhan­tes, o capi­ta­lismo toma pro­vi­dên­cias para que não tenhamos de tes­te­mu­nhar gente sendo explorada na confecção do produto que estamos consumindo.
Foi assim desde o início: os primeiros con­su­mi­do­res modernos já compravam os primeiros produtos indus­tri­a­li­za­dos sem ter de saber que as condições de trabalho das fábricas estava longe do ideal.
Esse sistema de desvio de atenção, no entanto, só alcançou a perfeição numa economia globalizada.
Não se iluda: em qualquer era dos homens o seu smartfone (que você não vê a hora de trocar) seria con­si­de­rado uma maravilha do mundo, digna de pere­gri­na­ção e de assombro. Porém quem quer pirâmides tem de suportar escravos. O capi­ta­lismo apenas tomou cuidado para que você não tenha de tes­te­mu­nhar as condições de trabalho dos seus.
Os escravos que cor­res­pon­dem à sua parcela de consumo estão com toda a pro­ba­bi­li­dade con­fi­na­dos em alguma fábrica da China. Para sua con­ve­ni­ên­cia, daqui você não tem de tes­te­mu­nhar a dureza das condições em que foi montado o seu smartfone ou o seu roteador wireless.
Essa distância entre o local ide­a­li­zado de consumo e um local de produção longe do ideal é ela mesma uma forma de alienação. Nesse caso é o con­su­mi­dor que se permite desu­ma­ni­zar, rebaixando-se a aceitar uma farsa que só um acordo mútuo e silen­ci­oso de vista grossa permite subsistir.
Num mundo glo­ba­li­zado, fica esta regra: se você pode comprar, alguém está pagando, e não é você.
► o capi­ta­lismo requer cada vez mais energia
Quando se reduz a economia à sua for­mu­la­ção mais simples, riqueza e consumo de energia são a mesma coisa. O capi­ta­lismo é uma máquina peculiar que só funciona enquanto cresce: os seus custos de manu­ten­ção só são cobertos enquanto mais consumo é arti­fi­ci­al­mente gerado (através de novos con­su­mi­do­res, novos produtos ou do seuaumento de consumo).
Para que haja manu­ten­ção de riqueza éneces­sá­rio que haja consumo de energia crescente: em outras palavras, o capi­ta­lismo requer que queimemos de comum acordo uma parcela cada vez maior dos recursos da Terra na forja capitalista.
Num mundo esférico é só de má fé que gente informada ousa colocar juntas palavras como “cres­ci­mento” e “sus­ten­tá­vel”. A des­ca­rac­te­ri­za­ção da paisagem e o holo­causto das espécies não são efeitos inde­se­ja­dos de algumas formas perversas e irres­pon­sá­veis de capi­ta­lismo; são o projeto e o com­bus­tí­vel de todas.
Embora as con­sequên­cias ine­vi­tá­veis desse tráfico estejam se tornando cada vez mais difíceis de ocultar, esta pode ser contada como outra das ins­tân­cias em que as injus­ti­ças mais graves do regime capi­ta­lista são mantidas fora do nosso campo de visão. Somente as gerações futuras poderão avaliar o custo total da nossa impre­vi­dên­cia presente; entre outras coisas, porque serão elas que terão de pagar os com­pro­mis­sos que estamos assinando agora.
► o capi­ta­lismo derrubou valores que eram sus­ten­ta­dos arti­fi­ci­al­mente, mas opera a partir do seu: o progresso
É inegável que a ascensão do capital denunciou e anulou valores que eram tidos como legítimos mas hoje enten­de­mos como arbi­trá­rios e arti­fi­ci­ais. Hoje a nenhuma pessoa sensata ocorreria sustentar o direito divino dos reis, os pri­vi­lé­gios inerentes da nobreza ou a supe­ri­o­ri­dade moral ou inte­lec­tual de sexo, raça, origem, crença, nas­ci­mento ou sangue.
O capi­ta­lismo contribui para anular o efeito desses meca­nis­mos de dominação, mas colocou em operação o seu, tão arbi­trá­rio e arti­fi­cial quanto aqueles que derrubou: a crença no progresso.
Cremos no mérito inerente do desen­vol­vi­mento do mesmo modo que as gerações que nos pre­ce­de­ram criam no mérito da raça, e, como elas, per­ma­ne­ce­mos igno­ran­tes de que estamos sendo mani­pu­la­dos por uma farsa sem fundo, sem men­su­ra­bi­li­dade e sem prestação de contas.
Bruce Sterling:
Os sucessos do progresso tornam-se problemas espi­nho­sos para a geração seguinte: não per­ma­ne­cem per­ma­nen­te­mente “melhores”. Nossos juízos de valor sobre o que é melhor são tem­po­rá­rios, intei­ra­mente limitados à nossa pers­pec­tiva no tempo. Não existe um “melhorô­me­tro”; ninguém tem como medir a extensão, a amplitude e a duração de uma “melhoria”. Melhor é um juízo abstrato de valor, não uma qualidade cien­tí­fica; não pode ser testado expe­ri­men­tal­mente. Ninguém sabe o que é melhor; na verdade, ninguém sabe o que é pior. É tremenda inge­nui­dade acreditar que cada des­do­bra­mento tec­no­ló­gico é neces­sa­ri­a­mente um avanço.
O que é o progresso? Quando acaba? Como se pode medi-lo? Quem decide quando basta? Como deter­mi­nar os seus méritos? Quais são as alter­na­ti­vas? A quem devemos pedir desculpas se estávamos errados? Devemos proteger do progresso algumas partes do mundo? Se sim, porque não proteger dele o mundo inteiro?
A crença no progresso justifica qualquer extinção, qualquer desa­pro­pri­a­ção, qualquer des­ca­rac­te­ri­za­ção, pre­ci­sa­mente como o pretexto invisível da “conversão do mundo” jus­ti­fi­cou todos os abusos, apro­pri­a­ções, geno­cí­dios e devas­ta­ções aben­ço­a­dos his­to­ri­ca­mente pela cristandade.
É uma forja, e é universal.
► o capi­ta­lismo faz o tra­ba­lha­dor desejar a própria opressão
O ideário capi­ta­lista depende for­te­mente e promove sem pausa o excep­ci­o­na­lismo, a ideia simples mas irre­sis­tí­vel de que com você será diferente. É a mesma promessa que alimenta a máquina das loterias, mas depende nesse caso de uma mani­fes­ta­ção par­ti­cu­lar da falsa cons­ci­ên­cia: a crença de que a sua agência bastará para alçá-lo da sua presente condição.
Como resultado, você é convidado a não ressentir-se pes­so­al­mente da carga opressiva do sistema, e a crer que as penas e maltratos servirão para filtrar os outros e permitir que você se destaque. Você chega a desejar para os outros e para si mesmo o fogo da opressão, da cobrança e da com­pe­ti­ti­vi­dade, porque acredita que ele o ajudará a demons­trar o seu valor.
Como notou Wilhelm Reich (e depois dele Foucault e Deleuze/Guatari), o desejo pela própria opressão é típico dos modos desu­ma­ni­zan­tes de operação dos regimes fascitas. Reich:
A coisa assom­brosa não é que alguns de vez em quando roubem ou que outros entrem oca­si­o­nal­mente em greve, mas que os que passam fome não roubem todos como prática habitual, e que os que são explo­ra­dos não per­ma­ne­çam todos em greve con­ti­nu­a­mente. Depois de séculos de explo­ra­ção, por que as pessoas ainda toleram ser humi­lha­das e escra­vi­za­das, ao ponto de desejarem a humi­lha­ção e a escra­vi­dão não só para os outros mas para si mesmas?
► o capi­ta­lismo cani­ba­liza os seus críticos e sequestra o discurso revolucionário
Mais esta regra: não há nada que o capi­ta­lismo não possa reverter em seu favor. Não há crítica ao capi­ta­lismo que não possa ser usada para agregar valor a uma camiseta, não há figura revo­lu­ci­o­ná­ria que não possa ter a sua imagem seques­trada numa campanha de publicidade.
A postura da Apple é nesse sentido exemplar. A empresa apropriou-se desde o início do discurso revo­lu­ci­o­ná­rio, equi­pa­rando o consumo dos seus produtos a um processo sub­ver­sivo e civi­li­za­tó­rio desen­ca­de­ado por uma elite de rebeldes, incon­for­ma­dos, criativos e lúcidos.
O comercial de lan­ça­mento do Macintosh, “1984”, usava imagens sugeridas pelo pesadelo fascista do livro de George Orwell para sugerir que adquirir o novo produto equivalia a um ato de bravura, um definido enga­ja­mento na luta contra o conformismo.
A apro­pri­a­ção está presente de maneira ainda mais cons­tran­ge­dora na campanha Think different/Pense diferente, de 1997. “Um viva para os malucos, os rebeldes, os incon­for­ma­dos”, dizia a narração do comercial, um dos mais famosos da história da pro­pa­ganda. E concluía: “Porque aqueles que são malucos o bastante para achar que podem mudar o mundo são aqueles que o acabam mudando”. A sugestão, nada sutil e nada fun­da­men­tada, era que consumir os produtos da Apple equivalia a assumir a postura revo­lu­ci­o­ná­ria de gente como Martin Luther King, Albert Einstein, Thomas Edison, John Lennon, Pablo Picasso, Mahatma Gandhi (GANDHI, meu amigo) – figuras cujas as imagens o comercial seques­trou para endossar aquilo que jamais endossariam.
Não foi a primeira vez e não será a última.
► o capi­ta­lismo não admite alternativas
O eco­no­mista Francis Fukuyama opinou famo­sa­mente que o capi­ta­lismo neo­li­be­ral é uma ideia tão boa e irre­to­cá­vel que sim­ples­mente não tem como ser subs­ti­tuída: nem agora, nem nunca.
Esse sen­ti­mento de supe­ri­o­ri­dade moral se traduz numa feroz com­ba­ti­vi­dade dirigida contra ideias com­pe­ti­do­ras, quer sejam reais ou ima­gi­na­das. O pro­po­nente do capi­ta­lismo (direita, estou falando com você) não irá admitir a mínima sugestão de que o seu sistema pode ser aper­fei­ço­ado ou corrigido, quanto menos substituído.
O homem de direita vê a si mesmo como infle­xí­vel defensor da liberdade, e irá responder a qualquer crítica com o argumento de que a liberdade não tem como ser aper­fei­ço­ada. Todos os ajustes que você propuser para conter os des­tem­pe­ros do capi­ta­lismo – taxações, impostos, regu­la­men­ta­ção de mercado, escolas públicas, assis­tên­cia e pre­vi­dên­cia social, dis­tri­bui­ção de renda, leis tra­ba­lhis­tas, áreas de pre­ser­va­ção – o par­ti­dá­rio da direita entenderá como estorvos inad­mis­sí­veis colocados no caminho da liberdade.
Em par­ti­cu­lar, o par­ti­dá­rio da direita procurará desa­cre­di­tar cada uma dessas noções como “comu­nis­tas”, ao ponto do mais insensato redu­ci­o­nismo. Como a história não cessa de demons­trar, a direita tentará denunciar como comunismo qualquer postura que por algum capricho não aprove, mesmo aquelas sem qualquer relação com a teoria ou a prática do comunismo (por exemplo, mulheres de cabelos curtos ou o casamento inter-racial).
► o capi­ta­lismo é inescapável
“Para onde fugirei do teu espírito? Para onde me afastarei da tua presença?”, espantou-se o Salmo 139 (vv.7-8), e o que dizia da divina presença aplica-se sem ajuste ao espírito da nossa época. “Se eu subir ao céu, lá tu estás; se fizer a minha cama no inferno, tu estarás lá também”.
Se eu for à China, lá encon­tra­rei um MacDonald’s. Se for a Teo­tihu­a­cán, lá encon­tra­rei um Walmart. No fundo do oceano e na montanha mais alta encon­tra­rei a mesma garrafa de plástico, e não importa onde for perderei ime­di­a­ta­mente a paciência se não tiver acesso a wi-fi.
Viver à margem da cultura dominante teve desde sempre os seus custos sociais, mas antes da nossa era ninguém teve de conhecer os custos de resistir a uma mono­cul­tura ver­da­dei­ra­mente global. Fazen­dei­ros urbanos como o Claudio Oliver e seus com­pa­nhei­ros, ou pro­pri­e­tá­rios rurais como o João Fris­chen­bru­der de Urubici, têm de enfrentar um rosário infin­dá­vel de obs­tá­cu­los, que se renovam a cada manhã, no esforço de manter sus­ten­tá­vel uma vida que dependa apenas par­ci­al­mente da máquina capitalista.
Querida Apple: os malucos, os rebeldes e os incon­for­ma­dos são os caras que nunca cairiam na sua conversa.
► o capi­ta­lismo pressupõe um desejo uniforme
O mundo já conheceu mono­cul­tu­ras, mas nenhuma foi arrogante ao ponto de pressupor um desejo per­fei­ta­mente uniforme – nem mesmo, incri­vel­mente, o cris­ti­a­nismo, que postulava como ine­vi­tá­vel uma parcela de oposição.
Os Estados Unidos, seus embai­xa­do­res na Terra, entendem o avanço do capi­ta­lismo como parte de um grande, magnânimo e pla­ne­tá­rio processo civi­li­za­tó­rio. Trata-se da graciosa dis­se­mi­na­ção de um modo de vida pelo qual todas as civi­li­za­ções e culturas anseiam mesmo sem saber.
Os evan­ge­lis­tas do capital tomam por incon­ce­bí­vel que os habi­tan­tes do Iraque, de Cuba, da floresta amazônica ou da estepe africana não desejem uni­for­me­mente ser “liberados” para o modo de vida capi­ta­lista. O muçulmano radical quer secre­ta­mente vestir Hugo Boss, o monge budista quer secre­ta­mente o último modelo do iPhone, a madre superiora quer secre­ta­mente uma bolsa LV, o cubano quer aber­ta­mente afundar-se em McNuggets – porque quem não iria desejar algo que é ine­ren­te­mente desejável?
Demorei a entender a frequên­cia e a ênfase com que meu amigo Daniel Oudshoorn acusa o capi­ta­lismo de “dis­ci­pli­nar o desejo”. Por certo o capi­ta­lismo pode ser acusado de coisas mais graves, não?
Gra­du­al­mente fui enten­dendo que não, não pode. O regime capi­ta­lista não tem como ter feito coisa mais perversa e pre­ju­di­cial do que uni­for­mi­zado o desejo. Dessa sua arro­gân­cia essencial nascem todas as outras.
Levei Georges Bataille para a cama, e o erro em dis­ci­pli­nar o desejo agora me parece mais do que evidente. O desejo, meu amigo, deve ser mantido abso­lu­ta­mente livre e indis­ci­pli­nado, uma metra­lha­dora abso­lu­ta­mente giratória, pro­du­zindo todo o tipo de hete­ro­ge­nei­dade pessoal, cultural e nacional. Um mundo equi­li­brado é um mundo em que grupos inteiros de pessoas escolhem modos de vida que você abso­lu­ta­mente não tem como entender. Um mundo de uma variedade ator­do­ante, obscena, inclas­si­fi­cá­vel, impos­sí­vel de tabular: pre­ci­sa­mente uma pintura de Bruegel.
O pastor de ovelhas deve poder desejarser pastor de ovelhas, o açou­gueiro deve poder desejar ser açou­gueiro, o lavrador deve poder desejar ser lavrador. O monge budista e a freira devem desejar uma vida frugal, Gandhi deve desejar tecer as próprias roupas, o Claudio Oliver e o profeta do Rio dos Cedrosdevem desejar que o capi­ta­lismo não seja ines­ca­pá­vel e devem agir em con­for­mi­dade com essa sua insen­sa­tez. Que muitos outros desejem renúncias, desvarios, poetices, festivais, ence­na­ções, tatuagens de henna, folias, impru­dên­cias, pinturas de areia, rodas de oração, pelejas de repente, danças cir­cu­la­res, muros de lamen­ta­ção, ídolos de manteiga, xilo­gra­vu­ras, pere­gri­na­ções, desvios de rota, poesia sufi e toda sorte de tradições que não terei jamais como compreender.
Uma dada viagem de elevador deve ter em média um executivo, um pai de santo, um budista, um nudista, um muçulmano, um repen­tista e um rei momo. Pelo menos metade da população urbana deve escolher andar descalça, espe­ci­al­mente os que trabalham de terno e gravata.
Rios e rios de pessoas, grossas e irre­sis­tí­veis torrentes humanas nas cidades e nos sertões, devem poder desejar o ócio em vez da autor­re­a­li­za­ção, preferir a preguiça à pro­du­ti­vi­dade. Soci­e­da­des inteiras devem ser livres para zombar do capi­ta­lismo, e outras soci­e­da­des devem zombar dessas, tomando suas respostas ao capi­ta­lismo como abso­lu­ta­mente toscas e insuficientes.
Fábricas não devem apagar monas­té­rios, praias de nudismo não devem apagar tipo­gra­fias, com­pa­nhias de ópera não devem apagar acam­pa­men­tos de ciganos, direitas não devem apagar esquerdas, pro­tes­tan­tes não devem apagar católicos. Meu Deus, viva a diver­si­dade, porque o que permanece variado permanece impos­sí­vel de controlar e de submeter. Diver­si­dade é despoder.
Nem mesmo o capi­ta­lismo, essa merda imensa e crescente, rotatória e fractal, precisa ser apagado por completo da prática ou da memória. Basta que a cri­a­ti­vi­dade humana ou alguma bem-aventurada crise (porque há pouca diferença) trabalhem para desafiar e vencer a sua obscena supremacia.

Paulo Brabo

Escrevo livros, faço desenhos e desenholetras. Meu livro mais recente, que você deve desejar comprar, é As divinas gerações. Esta é a Bacia das Almas, mas hoje em dia escrevo antes de tudo naForja Universal.

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